Em tudo que li após o meu diagnóstico de Esclerose Múltipla (EM), as mulheres negras, especialmente as mulheres negras da geração y (ou millennials, pessoas nascidas entre os anos 80 e início dos anos 90), pareciam ter sido apagadas da narrativa.
No final do meu primeiro ano de faculdade, a visão embaçada no meu olho esquerdo me levou do centro de saúde estudantil para um oftalmologista – e depois para uma sala de emergência.
Cada profissional que me viu naquele dia estava tão confuso quanto o anterior.
O estudante de medicina atribuiu meus problemas de visão à necessidade de óculos. O oftalmologista presumiu que eu tinha “dano nervoso reparável”. Os médicos do pronto-socorro ficaram tão perplexos que decidiram me internar para mais exames com um neurologista.
Acabei passando os 3 dias seguintes no hospital, passando por inúmeros exames e recebendo poucas respostas. Mas, depois que as ressonâncias magnéticas revelaram inflamação no cérebro e na coluna, ouvi as palavras “Esclerose Múltipla” pela primeira vez.
Eu nunca tinha ouvido falar da doença, e as explicações técnicas do neurologista e seu comportamento apático certamente não ajudaram. Olhava para ele, pasma, enquanto ele explicava os sintomas da doença, tais como fadiga, dor nas articulações, visão turva e a possibilidade de imobilidade.
Para alguém que raramente fica sem palavras, foi uma das poucas vezes na minha vida em que fiquei sem palavras. Reconhecendo o quão sobrecarregada eu estava, minha mãe, que pegou o primeiro voo disponível para estar ao meu lado, fez a pergunta muito óbvia: “Então, ela tem Esclerose Múltipla ou não?”
O neurologista deu de ombros e respondeu: “Provavelmente não”. Em vez disso, ele atribuiu meus sintomas ao estresse de frequentar uma universidade de elite, receitou alguns medicamentos e me mandou embora.
Três anos depois, finalmente recebi meu diagnóstico de Esclerose Múltipla (EM), uma doença autoimune conhecida por afetar desproporcionalmente as mulheres negras.
Desde então, reconheço que minhas experiências com doenças crônicas estão ligadas à minha negritude. Como recém-formada em direito, passei três anos estudando as maneiras pelas quais o racismo sistêmico pode ser velado em juridiquês complexo, mas tem efeitos diretos no acesso de comunidades negras e de baixa renda a cuidados de saúde de alta qualidade.
Eu experimentei em primeira mão como os preconceitos implícitos de um médico, a exclusão de participantes negros e pardos de ensaios clínicos e a falta de materiais de educação em saúde culturalmente competentes influenciam os resultados gerais de saúde das comunidades negras.
A falta de representação me fez sentir sozinha e envergonhada
Nos meses seguintes ao meu diagnóstico, pesquisei obsessivamente tudo o que pude.
Eu estava me mudando para São Francisco para começar meu primeiro emprego e tinha planos de me candidatar à faculdade de direito. Eu precisava de respostas sobre como prosperar enquanto lutava contra uma doença que faz com que o corpo literalmente ataque a si mesmo.
De dietas a tratamentos alternativos, a regimes de exercícios, li tudo. Mas, mesmo depois de ler tudo o que pude, nada “falou” comigo.
As mulheres negras eram, e ainda são, em grande parte inexistentes em pesquisas e ensaios clínicos. Suas histórias raramente foram amplificadas em grupos de defesa de pacientes e literatura educacional, apesar da progressão mais grave da doença.
Em tudo que li, as mulheres negras, principalmente as negras da geração y, pareciam ter sido apagadas da narrativa.
A falta de representatividade me fez sentir vergonha. Eu era realmente a única mulher negra de 20 e poucos anos vivendo com essa doença? A sociedade já questiona minhas habilidades em cada momento. O que eles diriam se soubessem que tenho uma doença crônica?
Sem uma comunidade que eu sentisse que realmente me entendia, decidi manter meu diagnóstico em segredo.
Foi só um ano depois do meu diagnóstico que me deparei com a hashtag #WeAreIllmatic, uma campanha criada por Victoria Reese para unir mulheres negras que vivem com Esclerose Múltipla.
Ler as histórias de mulheres negras prosperando apesar de sua Esclerose Múltipla me levou à beira das lágrimas. Esta era a comunidade de mulheres que eu ansiava, a comunidade que eu precisava para encontrar poder na minha história.
Encontrei o endereço de e-mail da Victoria e imediatamente entrei em contato com ela. Eu sabia que o trabalho era maior do que uma hashtag e me senti chamada a fazer parte da construção de algo que acabaria com a invisibilidade e o racismo que me mantinha em silêncio.
Trabalhando para lidar com o racismo sistêmico no sistema de saúde dos EUA
No início de 2020, Victoria e eu fundamos a We Are Ill como uma organização sem fins lucrativos para continuar a missão da campanha #WeAreIllmatic. Continuamos a desenvolver uma rede de mais de 1000 mulheres e estamos cultivando um espaço para que essas mulheres não apenas compartilhem sua história com a EM, mas também aprendam com outras.
Ao trabalhar com nossos parceiros do setor, exigimos que eles vão além da simples criação de conteúdo que aborde as preocupações da comunidade que atendemos, mas que reconheçam como suas práticas afetaram de forma diferente as mulheres negras. E que eles façam um trabalho para mudá-las.
Nos meses seguintes à fundação do We Are Ill, o COVID-19 chegou. Os impactos desproporcionais da pandemia na comunidade negra trouxeram à tona o racismo sistêmico e as desigualdades sociais que sempre marcaram nosso sistema de saúde.
A pandemia apenas amplificou a importância desse trabalho e, felizmente, We Are Ill não está fazendo isso sozinho:
- A Health in Her Hue está aproveitando a tecnologia para conectar mulheres negras a médicos negros comprometidos em erradicar as disparidades raciais de saúde que levaram a taxas mais altas de mortalidade materna para mulheres negras.
- Drugviu coleta informações relacionadas à saúde de comunidades negras para que seu histórico médico possa ser melhor representado em ensaios clínicos para criar tratamentos mais inclusivos.
- Os podcasts “Myelin and Melanin” e “Beyond Our Cells” destacam as histórias daqueles que vivem além de suas condições crônicas.
Não está tudo bem
Desde que entrei no mundo da advocacia, regularmente me perguntam quais conselhos eu tenho para mulheres negras que vivem com EM. E honestamente, eu tenho muitos:
- Não desista do seu médico.
- Exija que eles ouçam você.
- Peça um tratamento que funcione para você.
- Encontre as melhores práticas para reduzir o estresse, se puder.
- Coma de forma saudável, se puder.
- Exercite-se, se puder.
- Descanse, se puder.
- Acredite que sua história tem poder e invista em uma comunidade solidária.
Mas comecei a perceber que muitos desses conselhos estão enraizados em como viver em um sistema racista.
Não é certo que as mulheres negras sejam diagnosticadas erroneamente ou desacreditadas por profissionais da saúde.
Não está certo que os participantes de pesquisas sejam predominantemente brancos (menos de 2% dos ensaios clínicos de câncer financiados pelo Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos incluem participantes minoritários suficientes para fornecer informações úteis, por exemplo).
Não é certo viver com os estresses da discriminação, de uma doença crônica, da família, de emprego e dos meios de subsistência, em geral.
Não é bom viver sem saúde. Não é bom se sentir sem valor.
Por fim
Sempre darei apoio e conselhos às mulheres que lutam contra esta doença, mas é hora de os profissionais da saúde pública virem em auxílio das mulheres negras, desafiando a longa história de cuidados inadequados da comunidade médica.
Já estamos plantando as sementes para a mudança social e capacitando as mulheres negras a redefinir o que é ser doente. É hora deles se juntarem a nós.
Escrito por Lauren Hutton-Work, revisão médica de Heidi Moawad, M.D.
Artigo originalmente publicado em 28 de julho de 2020 no Healthline. Última revisão médica em 28 de julho de 2020.
Tradução e adaptação: Redação AME – Amigos Múltiplos pela Esclerose
Fonte: Bezzi MS