Hoje eu termino um processo. Desses em que o caminho ao qual se percorreu é muito mais importante do que o destino a que se chegou. Até porque, nesse caso, não há um fim determinado, mas o fim se confunde com um novo começo, em uma atividade de aprendizado contínuo. Ou seja, o ponto atual não funciona como um ponto de chegada, o final de um trajeto, mas o reconhecimento de que esse é apenas um novo começo. Ainda há muito a ser feito, muito a se percorrer. Todavia, é de se reconhecer que uma maior consciência, por toda reflexão e experiência, foi obtida durante a jornada.
Desde junho ou julho tenho pensado sobre a ação e mais especificamente sobre a possibilidade de agir, dentro dos meus limites e reconhecendo que necessito atualmente de cuidados. Tal coisa se originou de uma afetação pessoal, mas que procurou tratar de problemas que atingem também grande parte dos esclerosados. O que me motivou a isso foram duas coisas em especial. De um lado, o último dia dos namorados em que tive uma febre forte e fiquei muito dependente. Ali percebi que minha tirania de ditar o que devia ser feito não combinava muito com um corpo que nem conseguia levantar sozinho da cama e visivelmente precisava de ajuda. Do outro lado, o início dessas reflexões foi motivado por conversas que tive com a Bruna e por seu post para o blog Living Like you – “Ser um Cuidador cuidado” .
A relação cuidador-cuidado é uma relação complicada. Isso é potencializado ainda mais quando as funções se confundem e os papéis não são tão claros. Quando aquele que cuida, por ter a mesma doença que você, também necessita de cuidados. O que é o meu caso. Essa relação tem o mel e o fel de ser uma relação extremamente personalizada. O fato de a Bruna ser, ao mesmo tempo, minha esposa e cuidadora complexifica ainda mais esse vínculo. Ambos estamos sujeitos às dores e delícias dessas ligações.
No entanto, qualquer relacionamento implica cuidado, seja ele afetivo, de amizade, familiar etc. Aceitar cuidar é demonstrar amor. E por reconhecer isso, afirmo que é necessário cuidar de quem cuida da gente, retribuindo pelo menos parte do afeto e do carinho a nós despendido. O mínimo que se espera é gratidão a todos àqueles que nos ajudam a “superar” os obstáculos que aparecem no caminho.
Com isso em mente, passei a refletir mais detalhadamente a ação e as negociações que somos obrigados a realizar no convívio com o mundo e com os outros. Minha intenção foi, assim, pensar nas atitudes que poderia adotar para melhorar o trabalho daqueles que me oferecem seus cuidados. Já que a dependência e necessidade dos outros eram visíveis, comecei a pensar sobre a parte que me cabia nessa relação. Lógico que não pretendia que isso ficasse somente nas ideias, em palavras vazias, mas que isso se transformasse em atitudes práticas aplicadas no cotidiano. O final se confunde com o início e a reflexão é o começo da ação.
Pensando sobre esse assunto, procurei mudar meu comportamento. Isso em grande medida se deve a Bruna. Tenho muita sorte de ter alguém na minha vida que, além de cuidadora, é uma espécie de acompanhante social. Para além dos cuidados diários, ela me acompanha em meus projetos, como o doutorado, aulas, os encontros com os amigos etc. Por causa dela, posso ter uma vida social e continuar seguindo e lutando pelos meus sonhos. Sou muito grato e feliz porque tenho alguém que acorda no meio da noite para me ajudar a ir ao banheiro quando não estou bem e que aceita ficar em casa, mudando todos os nossos planos, em um dia que a fadiga bate.
Isso parece uma pena e alguém pode pensar: “coitada” da Bruna. Já lhe questionei por que ela fazia isso. Por que necessitando de cuidados ainda aceitava cuidar de alguém que dava tanto trabalho? A resposta dela foi amor. O cuidado não era pesado porque a pessoa do outro lado era aquele a quem se ama. É maravilhoso deitar em uma cama e compartilhar a fadiga, saber o que é sentir o sintoma que o outro está descrevendo, transformar tarefas de ajuda necessária em momentos gostosos de cumplicidade, como tomar banho junto, por exemplo.
Além disso, o peso diminui igualmente pelo fato de compartilhamos os mesmos desejos e lutas. O acompanhamento necessário que poderia ser visto como obrigação se torna gratificante aos dois. Os livros, os posicionamentos políticos e sociais, os sonhos, os interesses acadêmicos, os objetivos de trabalho etc, tudo isso faz com que seja maravilhoso acompanha-la em um evento sobre bengalas no interior do Estado, realizar uma palestra sobre o século XIX para um evento comemorativo dos 150 anos de lançamento de Alice no país das Maravilhas, ou ler juntos um texto em voz alta antes de dormir.
Antes de namorarmos, parafraseando Chico Buarque, escrevi a ela que se fosse rei pela minha lei todos seriam obrigados a ler seus textos. Felizmente a troca de emails à distância evoluiu ao convívio diário sob o mesmo teto. E posso dizer que (con)viver com a Bruna é didático. Certamente a lição mais importante que aprendi foi não valorizar a falta, mas sim o que se tem. A partir dessa perspectiva as coisas vêm como adição. Ao invés de me lamentar pelos livros que não li, pensando no que falta, percebo o que já realizei até então. As dificuldades não são vistas como sofrimentos, mas sob a perspectiva do que se pode fazer para contorná-las. E, acima de tudo, nas deficiências não são exaltadas o que se perdeu, mas o que se tem e o que se pode fazer para recuperar (A Tuka escreveu um ótimo post sobre isso).
Não corro atrás de um coelho mecânico sem nunca alcançá-lo, como descrevi em outro texto. Minha identidade não é aquilo que serei, focando sobre o que ainda me falta, mas o que sou agora. Desde que descobri a Esclerose Múltipla na minha vida perdi muita coisa: já não consigo andar direito, meu equilíbrio é péssimo, minha coordenação motora é sofrível, a capacidade de concentração foi pro beleléu, força e resistência são coisas que não existem. Sério, às vezes me pergunto quando atingirei o fundo dessa queda. Parece que caí em um poço sem fim. Como Alice, entrei pela toca do coelho e tenho que constantemente redefinir quem sou.
Perdi muitas coisas, mas não interessa ficar pensando em todas as capacidades que foram perdidas, e sim o que fazer a partir de então. Mas nesse processo todo, encontrei algo extremamente importante: a Bruna. E alguém pode me perguntar: Você passaria por tudo isso de novo para encontrá-la? Certamente, minha resposta seria sim. Ou: se você pudesse escolher entre não ter EM ou conhecer a Bruna, qual você escolheria? Sem pestanejar, escolheria ter conhecido a Bruna. Sei que foi a Esclerose que nos apresentou, pois se não fosse o diagnóstico não teria encontrado seu blog, mas não foi isso que nos uniu. Foram todos os interesses compartilhados que nos uniu e nos une.
Peço então licença a todos que leram até aqui para destinar as próximas linhas diretamente a Bruna: Amor, obrigado por tudo. Sou muito grato e feliz por ter você na minha vida. Obrigado pela companhia em todos os exames, consultas, aulas, orientações, congressos etc. Agradeço por você nunca ter desistido de mim, mesmo quando se apresentou uma situação difícil. Obrigado por empurrar minha cadeira e por me fornecer apoio para caminhar. Obrigado por nosso passado, pela experiência do presente e a expectativa compartilhada do futuro. Obrigado por todas os “boa noites” e “bom dias”, por passar em cima de suas dores para me ajudar, por não exaltar o que falta, mas aquilo que é constante: alguém que te ama e que adora lhe fazer cafuné e “carinho nas costas”. Pensei sobre o que posso fazer para lhe ajudar. Não tenho muito a oferecer fisicamente, mas prometo sorrir, esconder o mau humor e te amar sempre. Te amo e tenho muita gratidão por você estar presente na minha vida.