Pandêmia x Pandemônio: múltiplas reflexões sobre intensificações

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Bom dia pra quem é de bom dia! Boa tarde pra quem é de boa tarde! Boa noite pra quem é de boa noite! 

No meu primeiro texto para esse blog lindo e maravilhoso, eu me apresentei como essa pessoa múltipla e que aprendeu muitas coisas estando nesse lugar de multiplicidade. Pois bem, hoje eu gostaria de falar um pouco dos desafios que esse mesmo lugar me proporciona/proporcionou na vida, no mundo, incluindo o atual cenário pandêmico.

Antes de tudo, preciso confessar que eu me peguei começando esse texto várias vezes, inclusive como post de foto em instagram, rsrs, mas pela devida proporção acho que o negócio precisa ser “mais em baixo” como dizem alguns dos/das nossos/nossas mais velhos e velhas.

Sabe o que é? Eu tenho uma perspectiva bem aguda sobre a  pandêmia. Por ser quem eu sou e ocupar esse lugar múltiplo que ocupo na sociedade, não me cabe falar da dor apenas pelo isolamento social isso é sofrido sim, demais, afinal de contas, abraçar é mágico. Que saudade da troca de energia e respiro que a gente tinha no movimento de saída e volta para casa de diferentes espaços e lugares, tudo isso é tão bom, não é? Sem contar a  leveza de não pensar quantas pessoas morreram e ainda estão morrendo não só pelo vírus, mas também por irresponsabilidade governamental. Sem dúvida, a pressão de  que alguém que você ama ou até você mesme pode ser o/a próxime a entrar para esses números de óbitos traz OUTRA realidade pro nosso cotidiano.

Entretanto, se observarmos com mais destreza, veremos que, estamos num país de dimensões continentais, e nesse país “abençoado por Deus e bonito por natureza” como diz Jorge Ben, somos atravessades por realidades que são construídas a partir de lugares sociais implicados em raça, classe, gênero. Até aqui nenhum papo de comunista, concorda? Isso tudo, todos esses atravessamentos, já colocam, e muito, diversos corpos num lugar do que vou chamar aqui de pandemônio constante que a pandemia só fez intensificar.

      Meu objetivo não é valorar o sofrimento de ninguém, pra isso não existe régua, mas bater um papo honesto sobre sentimentos relacionados a todo esse contexto que estamos inserides, a partir do meu lugar. Alguns dados para  entender melhor do que se trata essa conversa:

Segundo dados do IBGE, o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo,  e ainda segundo dados do Atlas da violência de 2020[1] “em consonância com os resultados do Atlas da Violência 2019, é possível notar que as vítimas são majoritariamente negras (exceto as vítimas bissexuais, no ano de 2017), habitantes de zonas urbanas e solteiras. Mulheres permanecem significativamente mais vitimadas que homens. Convergem com os dados do ano anterior também os relativos ao sexo do autor, indicando que as agressões foram realizadas majoritariamente por homens”. (IPEA, 2020)

Sobre a juventude então, o mesmo documento traz uma perspectiva desoladora, o capítulo “Juventude Perdida” já começa enfatizando seu título: “Foram 30.873 jovens vítimas de homicídios no ano de 2018, o que significa uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens, e 53,3% do total de homicídios do país.” (IPEA, 2020). Os dados mencionados são de um contexto precedente à pandemia, o  seja, um verdadeiro pandêmonio.

Além de tudo isso, uma pesquisa do Geledés – Instituto da Mulher Negra, sobre a Educação de Meninas Negras na pandemia nos revela que há uma série de aprofundamentos de negações de acesso a direitos. A pesquisa integra o projeto “Crianças e adolescentes negras: o direito à educação, infância e juventude”. Segundo sua matéria de divulgação no site do Instituto “Crianças e adolescentes negras(os) não ocupam destaque nas discussões sobre as infâncias, mesmo sendo as mais vulneráveis e os que vivenciam diversas formas de preconceitos e discriminações. São múltiplas as privações vivenciadas por meninas e meninos negros que, cada vez mais cedo, enfrentam restrições de acesso à água potável, alimentos, moradias seguras, educação, saúde, entre outras iniquidades que assolam suas vidas”. [2]

Deu pra entender um pouquinho o que quero dizer?

Por isso que quando algumas pessoas que tomaram a vacina me disseram que se sentiram estranhas, mesmo que eu não tenha entendido muito bem, agora, depois de tomar a 1ªdose da vacina, eu entendo.

Eu, por exemplo, me senti culpada por querer comemorar, enquanto as mortes continuam e nem todes das nossas e dos nossos estão imunizades. Existem filas gigantescas e algumas burocracias muito desgastantes pra chegar até a vacina, sim (principalmente quando você tem doença crônica)! Quando a gente chega, não na porta do posto, do local de vacinação, mas na salinha, de frente com a seringa e a agulha, vemos trabalhadorAs, porque a maioria desse grupo é composto enfermeirAs ou técnicas em enfermagem, cansadas, exaustas, mas delicadas, dedicadas e esperançosas.. Por este motivo, nesse momento, acredito que seja indispensável dizer que tomar a vacina, falar sobre a pandemia e sobre as mortes é falar sobre política, sobre a defesa dos nossos direitos, sobre a ampliação deles.

Eu digo isso porque já vejo uns discursos por aí de gente já pensando “ah, mas quando a  pandemia passar…. tudo vai melhorar, tudo vai mudar, o mundo não vai ser mais como conhecemos” De fato, vejo aprofundamentos de desigualdades pesadíssimos nesse futuro recente e distópico.

 Ultimamente eu só tenho conseguido me perguntar quem vai cuidar do pandêmonio intensificado pela pandêmia? Das desigualdades, das dores, dos sofrimentos? Dos lutos?

Enquanto a gente discute rituais de sofrimento, qual a última tendência do mainstream ou como vai ser a rotina da semana, os planos de morte estão mais fortes que nunca: volta as aulas sem vacinação de 1ª e 2ªdose para estudantes, o comércio que NUNCA PARA, os bares, o turismo, aumento do preço de tudo, principalmente da cesta básica, recusa de vacinas por parte do governo federal, chacina policial nas periferias, cancelamento de pesquisa do IBGE, cortes orçamentários nas universidades públicas federais…. Acho que já tá bom, né? Até bateu a fadiga aqui…

O fato é que se saúde, educação e trabalho, pensando raça, classe e gênero no território brasileiro durante uma crise sanitária não são debates políticos o que é então?

Nos últimos dias eu estava começando a me cansar de ouvir as pessoas “reclamando” do desânimo, mas sem propor nada de acolhedor, de diferente ou de pensar estratégias diante disso tudo. Foi aí que eu li Ailton Krenak que em seu livro “A Vida Não é Útil” diz algo sobre o que fazemos quando vemos um deserto, se atravessamos ou corremos dele? Eu sempre decidi atravessar. Politizar a pandemia é atravessar o deserto em busca de água e por sobrevivência, é falar sobre o pandêmonio que a gente vivia antes da pandêmia, intensificar o desvelamento disso tudo – tendo você ou não uma doença crônica, auto-imune como a EM!!!!  

Para os finalmentes (porque eu tenho um problema sério de síntese) no dia que fui tomar minha primeira dose da vacina, um dos servidores que me atendeu, calmamente,  trabalha na instituição que  estudo atualmente, a UFBA. A Universidade Federal da Bahia que investiu pesado nas ações de extensão para contribuição com a comunidade local durante a pandêmia, tem até um site só com as ações e informações sobre (https://coronavirus.ufba.br/). Contudo, essa mesma instituição tem sofrido cortes violentíssimos que afetam inclusive as políticas de assistência estudantil que são voltadas para estudantes como eu, fruto de políticas de ações afirmativas. De qualquer forma, naquela fila, eu era a única jovem portadora de esclerose múltipla.

Eu tive que explicar meu contexto para algumas pessoas pra conseguir fazer o cadastro no sistema municipal de saúde. Tive que explicar por exemplo que sou diagnosticada e em acompanhamento desde 2009 no CATEM da Santa Casa de São Paulo, hospital público, financiado com verba pública, que também faz parte do SUS, que abre espaço para diversas pesquisas, que acolhe estudantes de várias instituições em formação no Hospital para estágio ou outras demandas educacionais. Também expliquei que eu faço tratamento com uma medicação que é fornecida pelas farmácias de alto custo, também do SUS. Meu tratamento é todo em São Paulo, mas residindo em Salvador – BA, o acompanhamento é também aqui, na cidade que me acolhe.

Então, consegui tomar a vacina, graças ao apoio da AME que me informou sobre possíveis alternativas e contatos, para viabilizar o acesso ao direito…. Deu tudo certo, informação e comunicação é poder,  eu sai vibrando por dentro: viva o sus! Viva a ciência, a educação e os direitos sociais!

Viva e lute por eles, pois isso é lutar por você e por quem ainda não consegue acessar ou ter esses direitos garantidos!!!

 

Ah, pra quem gosta de outras linguagens pra dialogar sobre a nossa realidade, eu suuuuper sugiro esse álbum chamado iSOLamento de um cara que admiro e respeito, Renan Inquérito: https://www.youtube.com/watch?v=eMGbNGTAzew

 

 

#VivaOSus #Vacinada #Covid

 

[1] Fonte: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020. O Atlas traz dados de 2017 a 2020

[2] Épossível acessara matéria completa aqui: https://www.geledes.org.br/a-educacao-de-meninas-negras-em-tempos-de-pandemia-o-aprofundamento-das-desigualdades-o-livro/

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