Por que fazer nada sem sentir culpa é tão difícil (e importante) para você

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Ainda que seja uma crítica à organização da sociedade e à exploração dos mais pobres pelos mais ricos, o filósofo Bertrand Russell, em Elogio ao Ócio, de 1932, sugeria uma jornada de trabalho de apenas quatro horas por dia. Russell, além de sustentar a viabilidade econômica e igualitária desse modelo, derrubava a concepção que havia aprendido desde criança: de que o ócio é o maior dos vícios e de que o trabalho mantinha as mentes ocupadas para não ceder aos "males" do mundo.

Com mais tempo para o lazer, as pessoas seriam mais felizes e gentis, e o trabalho exigido seria o suficiente para tornar o ócio agradável. Russell escreveu que, se os homens e mulheres não estivessem tão cansados, não aproveitariam o tempo livre com diversões "monótonas" e passivas e, talvez, teriam mais oportunidades para dedicar-se a alguma atividade de interesse público.

Mesmo que a nossa relação com o trabalho tenha passado por transformações desde que Russell escreveu seu livro, o homem do século 21 ainda tem dificuldade para usar os momentos ociosos e decidir o que fazer com eles. Tempo livre virou sinônimo de tempo que ainda não foi preenchido por alguma atividade produtiva. O trabalho tornou-se ubíquo com a ajuda do smartphone, e o período de lazer tornou-se, como alguns chamam, a "terceira jornada", em que corremos atrás de entretenimento como se fosse uma tarefa obrigatória, um momento a ser vivido ao máximo, de buscar intensas experiências.

O ócio, o prazer de fazer absolutamente nada, foi totalmente engolido pela rotina agitada do dia a dia. Ter pavor de férias e considerar-se inútil ao "estar a toa" são sentimentos cada vez mais comuns. Ieda Rhoden, doutora em ócio e potencial humano, trabalha com o conceito de "enfermidade do tempo" ao falar desses sintomas.

— É quando a pessoa tem dificuldade em lidar com o tempo livre. Se a agenda está cheia e alguém desmarca um compromisso, em vez de aproveitar para fazer algo de interesse pessoal, ela preenche a hora com alguma coisa formalmente ligada à ocupação, algo considerado socialmente produtivo — exemplifica a professora da Unisinos.

Um luxo reservado para poucos

Quanto mais desenvolvemos táticas e fugas para não ficarmos sozinhos com os pensamentos — como constantemente checar o smartphone —, mais surgem movimentos, estudos e especialistas que reforçam a importância do tempo livre para fazer o que se gosta e o que se quer, e o mais importante: sem culpa — e sem qualquer objetivo claro.

— Hoje, há um nível de ansiedade muito elevado e generalizado na sociedade. Uma das formas de aliviar isso é se ocupando. O problema não é estar fazendo alguma coisa, é se ocupar compulsivamente — afirma Ieda.

O motivo para tanta ansiedade, segundo a professora, é uma associação de duas cobranças: uma externa e outra interna. O estilo de vida predominante hoje coloca o trabalho no centro de tudo, e as outras atividades são postas em segundo plano. A sociedade cobra e espera que todos sejam seres altamente produtivos, dentro de um conceito capitalista, como explica Ieda.

As pessoas avaliam as outras pelo tanto que demonstram trabalhar e, consequentemente, essa expectativa gera uma cobrança individual de corresponder e se encaixar nesse padrão.

— Uma pessoa que tem uma autoestima baixa e não percebe-se incluída, se não tiver alguma coisa para fazer, sente-se desgarrada — completa Ana Maria Rossi, psicóloga e presidente da International Stress Management Association (Isma-BR).

Ieda diz que o ócio, no seu sentido mais puro, é luxo de poucos:

— Tem de se impor, delimitar os horários e dizer: esse é o meu momento comigo mesmo.

Ela classifica o ócio como uma experiência desfrutável, que pode vir até mesmo do trabalho, não somente nos tempos de lazer — que não são necessariamente um sinônimo para o verdadeiro ócio. Nisso, também se peca: a doutora cita um estudo que fez apresentando a participantes 135 possibilidades de ocupação no tempo livre, que incluíam atividades variadas, de trocar um instrumento a ir ao teatro. Ela notou que a maioria das pessoas se atém aos mesmos programas sempre: churrasco, TV, internet e uma eventual caminhada. Durante o tempo livre, as atividades são buscadas por uma característica cultural, comodidade, modismo ou para agradar os amigos e a família, e não para o próprio bem.

Mais consciência de quem somos

A grande sacada é encontrar alguma atividade que agregue aprendizado intrinsecamente, mas sem que seja esse o objetivo. São momentos que exigem exatamente a energia e a habilidade que a pessoa está disposta a desprender. Nem mais, nem menos. Isso proporciona uma "calibragem", o equilíbrio do próprio ser, uma retomada de quem realmente somos.

Se isso parece difícil, parar voluntariamente para a introspecção é ainda mais desafiador, segundo a professora Ieda:

— A pessoa não consegue parar porque não quer tomar contato consigo. Não quer se encarar, se escutar. Parar fatalmente nos faz pensar.

Para a escritora e pesquisadora Eva Hoffman, da Universidade de Kingston, em Londres, e autora do livro How to Be Bored (Como Ficar Entediado, em tradução livre) temos medo de ficar sozinhos com os nossos próprios pensamentos, mas é preciso nos acostumarmos: o ócio faz bem. A polonesa que imigrou para os Estados Unidos nos anos 1960, período pós-guerra, sentiu que algo havia se perdido durante essa fase: a paciência. Foi assim que começou a dedicar-se ao assunto.

— Lembro que esperei o computador ligar por 15 segundos e já estava impaciente. Pensei, nossa, algo realmente mudou — recorda Eva.

No livro, ela defende que momentos chamados de "tédio suave" — diferente daquele que indica apatia ou desinteresse — seriam bons para a saúde, oportunidades para nos reconectarmos com nós mesmos. O problema é que ainda não conseguimos parar para fazer isso. Até o tempo de lazer, segundo a autora, também estaria sob a mesma lógica capitalista: veríamos nosso tempo e nossas atividades de ócio como algo a ser trocado. Estar em constante movimento traria uma gratificação hedonista e instantânea, para nos manter empolgados com as nossas próprias vidas.

— Nesse mundo globalizado é muito difícil se ater as nossas experiências e nos tornarmos conscientes de como realmente somos. Precisamos de intervalos para nos descobrirmos — reflete a pesquisadora.

Eva reforça que não advoga em prol da completa inércia, e nem ao menos da meditação ou do mindfullness — que limpariam a mente —, mas, sim, da reflexão.

— Temos medo. Nos tornamos acostumados a fazer constantemente qualquer tipo de atividade para nos dar a ilusão de que estamos sempre ocupados. Ficar entediado é simplesmente permitir-se um tempo ocioso. É degustar um copo de café devagar. É o momento para fazer uma reflexão olhando para dentro. Com a hiperatividade do dia a dia, perdemos nossa própria experiência nessa vida — diz a autora.

Crianças ficam menos criativas

Do colégio, elas vão para aula de música. De lá, para as lições de inglês. No outro dia, precisam acordar cedo e terminar a tarefa de casa antes de chegar à escola. De tarde, os pais combinam que, por uma hora e meia, podem receber amigos para jogar videogame mas, depois, é necessário desligá-lo para a hora da leitura. Rotinas assim, cada vez mais comuns entre as crianças, devem ser vistas com cautela pelos pais. O dia a dia frenético da família que, muitas vezes, faz com que os filhos tenham de seguir no mesmo ritmo para não permanecerem sob descuido, pode estar roubando uma parte essencial da infância e criando adultos "ociofóbicos".

No livro Autopilot: The Art & Science of Doing Nothing (em tradução livre Piloto-Automático: a Arte e a Ciência de Fazer Nada), o pesquisador Andrew Smart menciona que nossa cultura é "obcecada" em otimizar o desenvolvimento das crianças com estímulos e planejamentos, e isso as está deixando menos criativas. Com horários preenchidos durante o dia, elas têm menos tempo para a introspecção e para processar experiências sociais e emocionais.

Tatiana Hemesath, psicoterapeuta infantil do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, reforça que momentos de ócio são importantes também na infância:

— As crianças que estão sempre conectadas começam a achar que, se há tempo livre, é ruim, passam a se sentir "entediadas". Mas é importante que elas tenham momentos de atividade, que sejam livres, fiquem soltas e possam brincar sem qualquer regra, direção. Ter tempo para imaginar e criar.

No desenvolvimento infantil, esses momentos livres são importantes para estimular a construção do processo simbólico e do pensamento. Excesso de planejamento na rotina dos mais novos pode levá-los ao estresse.

— Os pais precisam possibilitar um tempo para que a criança brinque sozinha e valorize o descanso, para que depois ela possa construir seus próprios momentos livres e desfrutá-los — finaliza Tatiana.

A prática de fazer nada

Há 10 anos, Marcelo Bohrer, 40 anos, criou um movimento que, atualmente, é considerado absolutamente inovador: o nadismo.

Em parques de Porto Alegre, convidava pessoas a se juntar a ele para fazer absolutamente nada por um período de cerca de uma hora. A proposta é trazer um colchão e contemplar a vista, pensar, deixar o pensamento livre, sem nenhuma técnica ou regra. É "freestyle", como ele define.

Atualmente morando na Alemanha, Bohrer continua ativo na organização dos encontros e diz que, na última década, viu que o nadismo está mais atual do que nunca.

— Há um tempo, as pessoas achavam estranho, não levavam a sério. Mas o dia a dia está sempre mais intenso. As empresas já têm programas de prevenção de estresse e estão vendo como a pausa é importante para a saúde — diz.

No Brasil, há opções de turismo que já consideram o valor dessa "parada". Em São Paulo, na cidade de Serra Negra, a pousada Shangri La reserva um espaço que contempla os que querem praticar o nadismo por alguns dias. Zero agitação por lá. O local é perfeito para olhar para as montanhas e tem uma vista espetacular.

Sirlene Terenciani, 51 anos, é proprietária do lugar há 19 anos e diz que o público que busca o ambiente é composto principalmente por médicos, advogados e profissionais que têm uma rotina corrida. A preocupação com o bem-estar mental e emocional leva os clientes até a pousada.

— Aqui a pessoa se dá o direito de fazer nada, contemplar a montanha. O foco é descansar, praticar nadismo mesmo. É isso que elas querem, tanto que me dizem: não tire o nadismo daqui — relata, bem-humorada.

Energias recarregadas em 15 minutos

Depois de cumprir a agenda da manhã e da tarde, o advogado Tarcisio Carneiro, 42 anos, coloca o celular no silencioso, ignora ligações e e-mails, e se acomoda em um canto do escritório no bairro Petrópolis, na Capital.

— Comecei a ver efeitos reais na minha vida, então virou sagrado. Todos os dias eu faço nada por uns 15 minutos. É uma forma de cuidar de mim e que não depende de ninguém — conta.

Há cerca de 10 anos, ele leu sobre o nadismo e os benefícios de tirar um tempinho para descansar a mente durante a rotina frenética do dia a dia. Quando ouviu falar, não deu muita atenção. Mas, em 2010, passou a priorizar essa parada na rotina.

— É isso que mantém minha sanidade. Fico literalmente contemplando a vista lá fora, o que está passando pela rua, e deixo minha mente vagar, sem pensar em nada próximo da minha realidade. É meu momento relax que ajudou na minha ansiedade, insônia e que recarrega as minhas energias — explica.

Em casa, Tarcisio também passou a se preocupar mais com os momentos de ócio e de descanso. Pai de um menino de 13 anos, é difícil ter tantas pausas até mesmo nos momentos de lazer, já que a família gosta de passear e ir ao cinema. Mesmo assim, ele prioriza o seu tempo consigo mesmo quando todos da casa estão ainda dormindo.

— Tiro um tempo em casa também para fazer esse momento de introspecção, às vezes olho fotos e imagens que são agradáveis e vou curtindo o momento. É uma forma de "sair do ar".

http://zh.clicrbs.com.br – 25/03/2016. Imagem: Creative Commons.

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