Documentário “Esclerosada Não é a Vó” retrata mulheres que tiveram suas vidas atravessadas pela esclerose múltipla

Conversamos com Márcia Denardin e Luiz Alberto, dois dos diretores do curta-metragem, sobre os significados e os bastidores desse filme

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Por Valentina Bressan, da Redação AME

O pré-lançamento do documentário “Esclerosada Não é a Vó”  acontecerá durante o Agosto Laranja, em duas sessões fechadas em parceria com a AME. O filme é uma produção das jornalistas Erenice Oliveira e Márcia

Denardin e do diretor de cinema Luiz Alberto Cassol. Assista ao teaser:

 


Com o objetivo de trazer o olhar de mulheres que convivem com esclerose múltipla (EM) de diferentes formas para as telonas, o documentário estreia em 2023 em festivais e circuitos de cinema. Já há interesse de pelo menos duas empresas em disponibilizar o curta-metragem no
streaming, e também o objetivo de lançamento no Youtube. A produção será exibida com audiodescrição, Libras e legendas para pessoas surdas e ensurdecidas (LSE).

Para compreender o contexto por trás do documentário e os mitos que ele coloca à tona – o que, aliás, alinha-se com o mote da campanha do Agosto Laranja deste ano, o #sEMtabu –, a Redação AME entrevistou Márcia Denardin e Luiz Alberto Cassol. A conversa aconteceu por videochamada. Márcia, uma mulher branca, usava óculos. Já Luiz, um homem branco e com barba, estava na sala da casa dele. 

“O Agosto Laranja é um momento fundamental para falar sobre a EM, porque nos dá força e abertura para debater o assunto”, conta Márcia. 

Confira a seguir a entrevista:

 

Como nasceu a ideia do documentário sobre esclerose múltipla?


Márcia
: A Erenice e eu trabalhávamos juntas em uma associação de Esclerose Múltipla em Santa Maria [RS]. Em 2019, ela se deparou com uma matéria sobre o festival de cinema da cidade [o Santa Maria Vídeo e Cinema], que naquele ano teria como tema o protagonismo das mulheres.

Como a EM tem um percentual maior de mulheres com diagnóstico e Santa Maria apresenta um dos maiores índices de diagnósticos do país — o dobro da média nacional – pensamos que poderíamos unir tudo isso para produzir um vídeo conectado à questão da mulher e participar do festival. 

A primeira ideia era gravar no celular e participar da mostra não competitiva [que não concorre a prêmios]. Só queríamos falar sobre a EM e levar o assunto para esse público da área mais ligada à produção cultural. 

Então conversamos com o Luciano Ribas, um dos organizadores do festival, para conseguir a indicação de alguém que editasse as imagens. Ele achou que a história tinha muito potencial e falou que nos apresentaria a alguém que ia gostar do projeto. Era o diretor Luiz Cassol: ele gostou tanto que disse que faria mais do que auxiliar na edição, porque achava que o tema valia um documentário mais profissional, um filme mesmo. 

O curta começou a ser produzido em 2019. Como o projeto evoluiu desde a exibição do primeiro corte em 2019? 


Cassol
: A pandemia afetou diretamente a produção, a narrativa, o roteiro, tudo do filme. Até o tamanho. 

Em 2019, como eu era um dos coordenadores do festival, por óbvio não poderíamos colocar o filme na sessão competitiva, teria de ser uma sessão especial. 

O  roteiro foi escrito por nós três [Erenice Oliveira, Márcia Denardin e Luiz Alberto Cassol]. Quando fizemos aquele primeiro corte, o público que assistiu ficou super interessado no assunto. As pessoas gostaram do fato de que elas e eu – sempre dou o mérito para elas, porque a ideia inicial foi delas – tivéssemos transformado aquela história em cinema. É um filme sobre esclerose, sim, mas acima de tudo é um filme sobre quatro mulheres que convivem com a experiência da EM de uma forma ou de outra – três delas têm EM e uma é cuidadora familiar. 

Saímos entusiasmados daquela sessão. Uma grande virada no projeto foi a entrada da editora e diretora Lisi Kieling. Quando comecei a fazer a montagem do documentário, entendi que esse trabalho precisava ser feito por uma mulher. 

A Lisi olhou todo o material novamente em 2022, explicamos nossa proposta e pedimos que ela apresentasse a versão dela. De cara, quando ela mostrou o primeiro corte, nos ganhou. Foi lindo, emocionante. Algumas partes coincidiam com o que eu tinha feito, mas ela encontrou alternativas absolutamente novas, trouxe um outro olhar para o mesmo material. Fizemos alguns ajustes pontuais, coisas que a Márcia e a Erenice pediram que entrasse, mas foi a partir daí que o projeto virou o material lindo que temos pronto hoje. 

Como foi feita a seleção dos depoimentos e por que foram escolhidas só mulheres para o documentário? 


Márcia:
A escolha decorreu da nossa ideia inicial: falar sobre a perspectiva da mulher na relação com a EM, fosse como pessoa com EM ou cuidadora. 

Obviamente, a Erenice e eu faríamos parte dos depoimentos. Daí trouxemos a Aline Souza, uma influenciadora digital que já costumava falar sob a sua perspectiva de mulher negra com EM, algo mais raro na realidade do Sul. A Bruna Rocha [diretora da AME/CDD] entrou por ser uma referência e por ela também ter relação com Santa Maria, por causa da família dela. 

Cassol: Aliás, isso é algo que aprendi com elas e fui pesquisar o assunto: o índice da doença é maior entre mulheres, e também é uma doença caucasiana. Então, a Aline traz essa questão fundamental, mostrando um outro lado. Inclusive, no Instagram, por ser uma mulher negra com EM, ela se chama “@aesclerosadararaa”. 

Um dos mitos sobre a esclerose múltipla é que ela só afeta mulheres. O que a história da Erenice mostra sobre isso? 


Márcia:
Enquanto o Luiz [marido da Erenice] ainda estava conosco, ele participou das nossas conversas e sempre foi um apoiador. A EM é mais rara em homens, mas o tipo mais comum entre eles é a chamada esclerose múltipla primária progressiva, que é mais dura e danosa. 

A EM que eu, a Aline e a Bruna temos causa um surto, depois tem uma remissão e tu se recupera. A primária não, ela tende a evoluir sempre. Então, estar ali abordando esse outro tipo de EM, tanto por meio da Erenice falando do Luiz quanto da Bruna falando sobre o Jota [marido da Bruna], que também tem esse tipo, trazemos um pouco do olhar masculino do EM, através das duas cuidadoras. A Bruna, além de cuidadora, tem EM.

O título do documentário remete à percepção errada de que a esclerose múltipla é uma doença de idosos, enquanto sabemos que a maioria dos diagnósticos acontece entre os 20 e os 40 anos, certo?


Márcia:
Esse tabu ainda é muito presente, mas a EM é uma doença de jovens. Ela é a segunda causa de afastamento de jovens do mercado de trabalho. Em um primeiro momento, a Erenice sugeriu o título de “esclerosada é a avó” como algo jocoso. 

Todo mundo fala, de forma incorreta, que quando alguém idoso começa a esquecer as coisas, ele está “esclerosado”. Só que queríamos trazer isso porque de fato nos chamamos de esclerosadas – afinal, se quem tem diabetes é diabético, quem tem EM é esclerosado. Queríamos mostrar isso porque há muitos diagnósticos tardios. Na faculdade de medicina se fala muito pouco a respeito. 

Quando surgem os sintomas, se pensa em fibromialgia, estresse, qualquer outra coisa que não EM. Mas se há jovens que acordam com visão dupla, formigamento na perna, perda do movimento em uma parte do corpo e nada disso se resolve sozinho depois de alguns dias, tem que começar a pensar em EM. Daí a importância de fazer esse trocadilho: esclerosada não é avó. Eu sugeri colocar esse “não” para que a gente consiga trazer a parte jocosa da Erenice, do bom humor, e ao mesmo tempo unir a essa fala da conscientização, porque não é a avó: somos nós, jovens adultos, crianças, adolescentes, que muitas vezes passamos uma vida toda com a doença e sem o diagnóstico. 

O único exame que identifica a EM é uma ressonância que aponte lesões, mas é preciso que o médico, junto do exame clínico, entenda e faça essa conexão. Para que tudo isso seja contemplado, colocamos esse “não” no título. 

Que outras noções erradas sobre a esclerose múltipla o filme pode ajudar a desmistificar?


Márcia:
Não sei se seriam mitos, mas nós falamos sobre o preconceito. Vivi isso por ter sido militar e vivido em um ambiente machista. Por ter quatro filhos, há esse preconceito de que não conseguiria dar conta das minhas tarefas de mãe, de dona de casa, de profissional. 

Também há um preconceito por ser uma doença invisível: posso estar na fila prioritária no supermercado, como é nosso direito, e ser julgada. Não é porque a maior parte dos sintomas são invisíveis, e você não os vê, que eu não os estou sentindo. Também mostramos o que passamos na busca por políticas públicas, pela incorporação da medicação no SUS… É a nossa luta pelo direito de buscar tratamento. 

O filme mostra que a nossa vida não é fácil, mas tentamos nos adaptar a ela para fazer o que queremos fazer. Inclusive um documentário! 

Uma coisa legal que aconteceu durante a gravação – e só a partir da tua pergunta estou olhando por esta perspectiva – é que ficou claro como na vida com EM não há certezas, não há previsões. Posso combinar de dar essa entrevista, por exemplo, mas acordar sem conseguir enxergar ou falar, por isso não posso prever com certeza o que vou fazer. 

Sempre posso acordar com algum sintoma que me impeça. Nas três diárias de gravação, isso aconteceu, mas demos um jeito de que saísse como programado. A Erenice, por exemplo, tinha perdido o marido dias antes de gravar, mas decidiu que mesmo assim – e até por conta disso – iria seguir com as datas agendadas, mesmo em luto. 

A Aline estava no meio de um tratamento no hospital, estava abalada, sensível, com todos os problemas que envolvem nosso tratamento com corticoides. E eu estava entrando em surto, naquele dia estava acabada, no filme mesmo apareço com um semblante de dor. Mas aquilo era importante para nós, e criamos a condição de fazer o que estava programado. Essa questão da imprevisibilidade da EM, seja por ser cuidador ou por ter a doença, está muito presente no filme.

Cassol, você já participou da produção de outros filmes com a temática da saúde. Qual foi o diferencial de dirigir “Esclerosada Não é a Vó”? 


Cassol:
Sabe que eu nem tinha pensado nisso até um jornalista me fazer essa pergunta recentemente. Ele falou sobre eu já ter feito o Câncer – Sem Medo da Palavra (2009) e o Grandes médicos (2018), e me dei conta. Acho que isso vem pelo viés de que gosto de tratar de temas que outros realizadores muitas vezes não querem abordar. Agora, por exemplo, também estou finalizando um curta sobre a dívida pública brasileira, algo que ninguém quer tratar porque bate de frente com muitos sistemas. Os produtores me ligaram justamente porque sabem que gosto desses temas polêmicos e também fiz um longa sobre o golpe contra a presidenta Dilma. 

Não adianta fazer de conta que não existe: precisamos falar sobre EM, então vamos fazer um filme sobre EM. A Márcia e a Erenice me trouxeram essa oportunidade, e elas tinham absoluta concretude no que queriam contar. O filme ia sair comigo ou sem mim. O que eu propus foi ajudar com minha experiência de cinema para fazer um filme com uma equipe maior, que poderia ter um alcance maior – e é o que vai acontecer. Gosto desses temas que precisam ser mais conhecidos pelas pessoas, aprofundados para que se tenha acesso e se possa ter opiniões a respeito. 

Márcia, como foi para você se ver representada no filme, tanto na frente quanto por trás das telas?


Márcia
: Também fiquei surpresa, quando fizemos nossa live de lançamento do Instagram do curta, ao lembrar que, em 2013, fizemos um clipe para a campanha de Agosto Laranja daquele ano. Eu estava assistindo a um DVD do Sambô que meus filhos me deram e percebi que a letra da música Um Dia de Sol me descrevia muito bem, descrevia como é receber o diagnóstico, como ficamos naquele momento e como podemos ficar. Porque o diagnóstico não é a sentença de que teremos uma vida incapaz, mas esse rótulo existe. 

No meu caso, fui tratada como incapaz profissionalmente e fui aposentada. Podemos ter dificuldades, mas elas são contornáveis. Não somos incapazes, ainda há muito desconhecimento e aí entra a importância da informação.

Pedi aos produtores da banda o uso do refrão da música do Sambô em outro projeto. Mas, para minha surpresa, eles permitiram usar a música toda e toparam participar. O Hospital de Caridade, onde já fiquei internada 52 vezes, também nos deu a oportunidade de gravar ali cenas de ressonância, de exames. Foi uma baita produção feita sem um centavo, mas com muitos afetos e apoios. 

Vejo que lá atrás eu já tinha essa ideia de falar sobre EM no audiovisual, me arrisquei e foi uma baita produção. Durante o ano inteiro, saímos em shows pelo país subindo no palco e falando sobre EM para aquele monte de gente jovem, o público que queríamos atingir. 

Eu amo cinema, séries, amo a sétima arte, e estar presente nela de duas formas é mais do que um sonho realizado, é um projeto de vida que, se não fosse a EM, eu muito provavelmente não chegaria nem perto. Quando falo que a minha vida com EM é infinitamente melhor do que minha vida antes dela, é verdade, porque eu melhoro como pessoa, como profissional, como mulher, como cidadã, como mãe, filha, amiga. Essa é uma oportunidade que eu não teria sem o diagnóstico. 

As pessoas costumam dizer que aprendemos com a dor ou com o amor. Eu acho que, com o diagnóstico, aprendemos tanto com a dor quanto com o amor, porque ambos estão presentes. Então se ver na telona e saber que tu fez parte daquilo, das tuas formas, é uma realização de vida. Graças a esse moço também [aponta para o Luiz Cassol], porque senão o filme não sairia na telona.

Que tipo de reflexões sobre a EM vocês gostariam que o documentário trouxesse para o público? 


Cassol:
Como alguém que sabia pouco da doença, tive lições emblemáticas fazendo o filme. A Erenice era casada com o Luiz, que faleceu pouco antes da gravação. Isso me chocou muito, eu já conhecia ele de outro projeto que fiz sobre as vítimas da Boate Kiss, e o Luiz estava trabalhando como jornalista voluntário das famílias das vítimas na época.

Quando ele morreu, achei que a Erenice iria querer adiar a gravação, mas ela logo me perguntou se estava tudo certo para as diárias. Eu já sabia da força da Erenice, mas naquele momento tive certeza de estar tratando com alguém com uma personalidade singular e única. 

A Márcia tem uma frase no documentário em que ela diz que o dia que recebeu o diagnóstico foi o dia mais feliz da vida dela. Tanto no dia da gravação quanto toda vez que assisto o filme, esse é um ponto emblemático, que fala muito da força da Márcia. Mostra como a sociedade é preconceituosa com a EM, desconhece a doença, mas para ela foi um alívio porque ela finalmente poderia explicar seu cansaço. 

Qual a expectativa de vocês para a repercussão do curta? 


Cassol:
A Márcia e a Erenice querem ir para o Oscar (risos), mas a minha expectativa é fazer uma carreira em festivais nacionais e internacionais. Também queremos entrar no circuito de cinema, fazendo parcerias com cinemas que exibem curtas antes dos longas. Nosso desejo é que o curta seja debatido no maior número de lugares possível. Onde quiserem que o “Esclerosada Não é a Vó” seja exibido, ele será. 

Márcia: Quando possível, queremos sessões de debates em que possamos conversar, montar isso em escolas, universidades, qualquer lugar em que a gente entenda que o filme possa contribuir para a conscientização. Em muitas entrevistas, já me perguntaram se quero que todo mundo tenha esclerose. Não, eu não quero, mas quero que todos que tenham EM possam ser diagnosticados. É por isso que nós falamos. 

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