Há pelo menos três décadas, cientistas investigam a interação do álcool com o desencadeamento da esclerose múltipla (EM). Eis que a mais ampla pesquisa sobre o assunto, publicada em dezembro de 2022 na revista científica Scientific Reports, da Nature, indica não haver associação entre o consumo dessas bebidas e o risco para desenvolvimento da doença.
“Este é o principal estudo publicado sobre o assunto”, avalia o neurologista Alessandro Finkelsztejn, coordenador do Ambulatório de Esclerose Múltipla e Doenças Desmielinizantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. “O estudo avaliou um número enorme de pacientes, o maior contingente até então, e a análise estatística foi muito correta e detalhada”, completa.
A pesquisa é fruto de uma parceria entre a Universidade Queen Mary, do Reino Unido, e o Centro Médico Sheba, de Israel, com base em informações de saúde de mais de 409 mil britânicos. As informações vieram do UK Biobank, um banco que agrupa dados genéticos e de estilo de vida de cerca de meio milhão de pessoas com idades entre 40 e 69 anos.
“Um detalhe que torna as informações muito acuradas é que esse banco de dados tem uma ligação com praticamente todo o sistema de saúde do Reino Unido. Se uma pessoa de lá se consultar em uma unidade de saúde, a ficha de atendimento tende a ser enviada automaticamente a esse banco”, explica Finkelsztejn.
A avaliação das informações revela que as taxas de consumo de álcool informadas pelos pacientes são similares entre aqueles com um diagnóstico de esclerose múltipla (um total de 2 100 indivíduos) e entre quem não possuía a doença.
A motivação para essa investigação surgiu após um estudo anterior chegar a uma conclusão diferente. Em 2021, pesquisadores da universidade sueca de Karolinska publicaram um artigo na mesma Scientific Reports sugerindo que quem consumia álcool tinha menor risco de manifestar a doença.
“Mas o estudo sueco contou com um número muito menor de pacientes do que o britânico”, contrapõe Finkelsztejn. A diferente abrangência dos dados, como aponta o neurologista, foi um dos motivos apontados pelos cientistas britânicos para a divergência entre os resultados.
Com mais de 400 mil pacientes avaliados, a pesquisa mais recente representa, segundo o médico, uma avaliação mais próxima da realidade. “Acredito que os resultados desse estudo sejam os de maior impacto e reflitam a realidade da questão do álcool e esclerose múltipla”, pontua. Ou seja, parece que as bebidas alcoólicas não aumentam o risco de esclerose múltipla – mas também não o reduzem.
Contudo, ainda é preciso ampliar os estudos. Entre as limitações da pesquisa atual está o fato de que ela não incluiu pacientes com heranças genéticas que não fossem europeias.
“Por mais que os dados sejam confiáveis e venham de um banco organizado, temos de entender que as análises são específicas daquela população”, pondera o neurologista. “Se esse estudo for feito no Brasil, talvez pudesse trazer resultados diferentes, porque cada população tem sua genética e suscetibilidade”, complementa.
O médico também esclarece que a esclerose múltipla tem causas diversas, que estão em constante interação. Isto é, não há um único fator – seja ele genético ou relacionado a hábitos de vida – que determine o desenvolvimento da condição. “Um estudo mostrou haver mais de 200 alterações genéticas em indivíduos com esclerose múltipla, e não se sabe ainda como essas alterações se relacionam entre si”, exemplifica Finkelsztejn.
No caso da relação entre EM e álcool, outra diferença a ser considerada é a diversidade cultural. O padrão de consumo de bebidas alcoólicas varia de país para país. De acordo com um levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2019, em média um britânico consome 4 litros a mais de álcool do que um brasileiro.
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E para quem tem EM?
Aí a recomendação sobre o consumo de álcool segue a mesma. “Como médico, sempre vamos orientar que o ideal é não beber”, afirma Finkelsztejn.
As consequências vão de interações inesperadas com medicamentos a sintomas mais intensos, como piora do equilíbrio e quedas. O álcool, por si só, também pode causar problemas neurológicos, como alterações cognitivas, distúrbios no sono e tremores mesmo em toda a população.
Principalmente se ingerido de forma abusiva, os efeitos do álcool podem ser confundidos com uma piora do quadro da EM. Ou mesmo dificultar práticas reconhecidamente benéficas para as pessoas com essa doença, como fazer exercícios e se alimentar de forma saudável.