A relação entre leis e magistrados poderia ser sintetizada em uma pertinente questão: bons homens fazem boas leis? Ou boas leis fazem bons homens? Na defesa da justiça, será que poderíamos confiar única e cegamente em um dos pratos dessa balança? A lei seria suficiente para conduzir as pessoas no caminho do bom e do certo? Por outro lado, será que poderíamos confiar o interesse geral e a definição do justo nas mãos de um único grupo? Em certa medida, é esse desafio que a experiência democrática nos oferece. E, nela, novamente o bom senso é chamado.
Evoco essa discussão para trazer um assunto que incomodou a muitos que militam e advogam na causa das pessoas com deficiência. Em 2008, o Brasil ratificou o texto da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada pela ONU, em uma emenda constitucional. Desde então, as batalhas daqueles que lutam pelos direitos das pessoas com uma deficiência se tornaram ainda mais forte (não que essa luta tenha começado ali, como mostra esse documentário). Mas certamente reuniu diretrizes importantes.
Em 2012, o Grupo de Trabalho responsável pela redação do denominado Estatuto da Pessoa com Deficiência se reuniu pela primeira vez. Esse seria formado tanto por parlamentares quanto por representantes de instituições ligadas ao direito das pessoas com deficiência. O texto base do projeto vem desde 2000, mesmo assim se demorou mais de uma década para que algo finalmente avançasse.
Como base, os participantes do GT se ampararam tanto na Constituição Federal de 1988, como em suas emendas, nos projetos de lei 3.638/2000 e 7.699/2006, no protocolo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e nos relatórios das Conferências Nacionais dos Direitos da Pessoa com Deficiência (anos 2006, 2008 e 2012). Ou seja, estavam assessorados pelas discussões mais recentes no que tange a questão. O resultado dessas discussões desembocou na lei 13.146/2015, a chamada Lei Brasileira de Inclusão (LBI).
Há muitos pontos de debate sobre essa lei, no entanto gostaria de abordar um em especial. O Sindicato das Escolas Particulares de Santa Catarina (SINEPE/SC) entrou com uma ação contra o artigo 28 da LBI, que proibia a cobrança de valores adicionais (ou seja, mensalidades mais caras) a pessoas com deficiência nas escolas particulares, incluindo instituições de ensino superior. Uma lei que fora criada para equiparar desigualdades e forçar comportamentos mais justos foi tida como inconstitucional.
Tal reclamação poderia ter caído em ouvidos indiferentes, todavia recebeu atenção e obteve aceitação do juiz federal Alcides Vetorazzi, da 2ª Vara Federal de Florianópolis. O que o SINEPE chama de “conquista” certamente é um retrocesso. Como bem definiu Fernando Brito, em recente artigo, é esse o prêmio que o estudante com deficiência e seus pais recebem após todos os obstáculos vencidos para se chegar ao ensino superior: mensalidades diferenciadas e mais caras.
O parecer do juiz, no entanto, revela algo mais do que o simples debate jurídico. Demonstra o projeto de educação que está em jogo e que ele e o SINEPE defendem. Nele a educação não é vista como um direito, mas como mercadoria. O ensino e o aprendizado não são os objetivos finais, mas sim o lucro. Inclusive, uma das leis evocadas pelo magistrado para justificar a cobrança diferenciada aos alunos com deficiência é a 8.078/1990, o denominado Código de Defesa do Consumidor.
Sua argumentação, em favor da cobrança diferenciada, é sustentada pela Constituição Federal de 1988, a lei 8.078/1990 e a lei 9.870/1999. Ou seja, todas anteriores à resolução da ONU e às Conferências Nacionais que marcaram o século XXI e aos debates intensos dos movimentos das Pessoas com Deficiência. Dialoga não com os preceitos de uma sociedade inclusiva, mas com uma estrutura arcaica, que subvaloriza a diversidade e que uma pessoa com deficiência sequer saía de casa, quanto mais podia sonhar com uma formaçáo no ensino superior. Nesse caso, a “justiça” é requerida pela lei que mais me convém, aquela que mais serve aos meus objetivos; tudo isso em prol dos interesses de alguns. Dane-se se há uma profunda discussão sobre o assunto, vou me amparar em leis do século passado para aceitar a cobrança diferenciada em benefício dos “maltrapilhos” donos de escolas particulares.
Tal justificativa é tão ingênua e mostra tão claramente os interesses econômicos por trás da ação do SINEPE e do parecer do juiz federal –apesar de tentarem travesti-los de preocupacão, cuidado e amor-, que, a mim, se assemelha ao discurso daqueles senhores do século XIX contrários ao fim da escravidão devido a um suposto direito de propriedade previsto pela legislação. Ainda não sabemos o impacto que a análise do magistrado ocasionará na jurisprudencia e na organização da educação particular brasileira, mas não deixa de ser amargo o gosto da simples existência de tal posição. Chega a dar uma desesperança na humanidade, um sentimento de injustiça. É triste saber que aqueles responsáveis por dizer o direito (iuris dictio), na verdade atuam contra ele.
Todos conhecemos casos em que a lei foi atropelada em benefícios escusos. Quase todos os dias, como uma situação que se repete e que pouco podemos fazer infelizmente, somos informados sobre tais situações. Mas, voltando às perguntas iniciais: bons homens fazem boas leis? Ou boas leis fazem bons homens? Depende, como fica claro nesse caso, tanto juízes quanto leis podem ser empregadas contra a justiça e o bem comum, em nome de interesses privados. Nem os ditames humanos ou jurídicos são garantias efetivas no cumprimento do que é certo e justo. A isso, novamente precisamos do bom senso para continuar lutando e fazendo o melhor para mudar as coisas que nos incomodam, sendo uma voz dissonante que se levanta contra as arbitrariedades que a lei permite contra a justiça. Quando a lei não está em diálogo com a sociedade, não é a sociedade que deve se adequar a lei. Ao contrário, é a lei que deve mudar!