Prevenção ou preempção?

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Quem me conhece pessoalmente sabe que eu uso bengala e ando com bastante dificuldade. Ultimamente dei uma visível piorada e dependo das pessoas para atividades simples como cortar comida ou amarrar o tênis. E por isso sou muito grato a tod@s que me ajudam, de caronas a me ajudar a levantar. Um dia vou escrever sobre gratidão, mas não é esse o assunto de hoje. Por conta de tudo isso, tenho pensado muito a respeito dos limites e as escolhas disponíveis àqueles que passam pela experiência de conviver com uma doença incapacitante e debilitante. Essa preocupação atual certamente me motivou a escrever o último post e será o foco das reflexões dos meus próximos escritos. No entanto, mais do que um modelo a seguir ou algo que fiz e deu certo, esse texto é mais uma reflexão sobre algo que me chamou atenção ultimamente e me fez refletir a respeito de certos comportamentos. Levanta mais perguntas do que oferece respostas.

Prevenção ou preempção? Todos que vivem a experiência de uma doença, de alguma forma, precisam lidar com essa questão. A ideia de prevenir nos é mais conhecida. Certamente, já ouvimos aquela frase de que “é melhor prevenir do que remediar”. Resumidamente, é a noção de que se deve adotar uma postura prudente a respeito de algo a fim de se evitar um mal maior e possível.

A noção de preempção é um conceito bem mais difícil e que tive acesso apenas recentemente. Derivado do direito, determina sobre os benefícios assegurados a um comprador em adquirir o objeto pactuado anteriormente. Enquanto a prevenção adquire um ideal de preservação futura, a preempção advoga ao bem de uma certeza passada. A ação se desenrola a partir de uma ideia já pactuada. Ou seja, você quer ter o produto que comprou e, por isso, adota uma postura que condiz com a imagem que projetou.

Sob esses opostos, acredito, estão construídas nossas experiências e capacidades de ação. Não estou dizendo que é fácil, ao contrário é algo bem difícil. Muitas vezes, inclusive, somos obrigados a agir ou reagir ao outro sem sequer termos o tempo necessário a pensar, pois sempre estamos em relação com o “Outro”. Nossa escolha é sempre pactuada consigo, com o “Outro” ou com os “demais”. Exige negociação. Nesse sentido, como saberemos se estamos evitando ou efetuando uma ação por prudência, medo ou exagero? Sinceramente, não sei se saberemos de início, o que nos faz sumariamente responsáveis por nossas consequências.

Lembro-me de uma cena do filme “Crash”. Nela, um sujeito branco ao dar carona a um sujeito negro se defronta com uma situação: o seu acompanhante coloca a mão no bolso para lhe mostrar algo. A ação acaba gerando uma tensão, que tem como desfecho a morte do negro por causa de um tiro disparado pelo motorista branco. Prevenção ou preempção? Após o disparo, o que sai do bolso do passageiro é apenas a imagem de um santo e não uma arma, como pensou o branco. Mas, sua imagem do negro pobre lhe assegurou que era um assalto, como a certeza de um “produto já pactuado”. Podia ser de fato um assalto ou coisa pior. E nesse caso, julgar errado podia ser uma questão de matar ou morrer. Mas a tensão do momento e a representação do objeto o levou ao erro e à morte de seu passageiro. Cabe a pergunta: será que sua resposta seria a mesma se o “Outro” fosse uma mulher, um idoso, um árabe, um evangélico ou uma pessoa com deficiência?

Casos de possíveis prevenções, justificadas como tais, que se transformam em preempções são inúmeros. Podemos lembrar que os EUA justificaram a invasão do Iraque devido à existência de armas químicas. O que se mostrou uma falácia posteriormente. Atualmente, bombardeios “preventivos” são feitos a populações indefesas em nome da “Guerra ao terror”. A Angelina Jolie fez uma cirurgia nos seios para evitar a alta possibilidade de “um dia” desenvolver câncer de mama. Em nome de uma suposta segurança, nos cercamos de câmeras. E assim vai… exemplos não faltam, tanto na vida social quanto individual. Tenho minha opinião sobre algumas questões, mas nessas linhas não estou querendo julgar, apenas descrever o que vejo como uma ação preemptiva, a fim de ficar mais claro.

A lógica, em suma, é atirar primeiro e perguntar depois. Sob esse ponto de vista, a imagem que temos do “Outro” nos basta para realizar uma ação e tomar uma decisão. O objeto que compramos deve ser entregue conforme o prometido anteriormente. Um negro pobre deve ser um assaltante, um muçulmano deve ser fanático religioso que produz armas químicas a fim de destruir as nações inimigas etc. No entanto, como diz a música do Rappa: “As grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você quem está nessa prisão”.  Ao fim, o que nos resta é uma arma “apontada para a cara do sossego” e uma “paz que eu não quero”. O medo do que pode acontecer enfraquece a liberdade e espontaneidade para agir.

Nisso, com relação à pessoa que vive a experiência de uma doença, a imagem construída é quase sempre de incapacidade, como se não se esperasse muito dela. Os discursos de superação, de infantilização, do coitadinho que se superou porque não se esperava nada dele surgem daí. A representação daquele sujeito era a de que ele não teria nada a oferecer. Certamente, essa não é a visão de quem convive com alguém com uma deficiência. Isso muda atitudes e ideias. Mas mesmo elas, talvez, não têm noção da euforia de um “consegui” ou da dor moral de um tombo. Ou talvez tenham e eu não percebo.

Não estou dizendo que lidar com isso é uma questão fácil e unicamente individual, o que ficará mais claro nos meus próximos posts. Como disse acima, é sempre uma negociação. No entanto, acredito que uma forma de encarar essa complicada situação é pensar sobre como a experiência da doença lhe constitui e como você vive a experiência da doença. É uma via de mão dupla. Apesar da esclerose, desse elemento em comum que nos liga, muito da forma como manejamos nossas experiências e consequências, diz respeito ao que temos de expectativas e projetamos para o futuro.

À noite, quando vou ao banheiro, a Bruna sempre me pergunta: “amor, precisa de ajuda?” Geralmente demoro a responder. Não por não ter escutado, mas para ter certeza se vou precisar de ajuda mesmo. Nesse momento, às vezes, me passa pela cabeça: prevenção ou preempção? Vale à pena acordá-la se acredito que consigo e que estou bem? Seria exagero, medo ou prudência? A princípio, não sei. Só realizando a ação saberei. Existe, de fato, uma possibilidade de eu cair. Se cair, coloco em dúvida minha certeza e assumo as consequências. Se der me levanto sozinho ou com a ajuda dos outros, senão fico deitado no chão e aproveito para descansar. A preempção travestida de prevenção pode ser aterrorizante. Afinal, como diria Goya: el sueño de la razon produce monstruos.

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