Estou sentada no sofá olhando pela janela

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Estou sentada no sofá olhando pela janela, enquanto cada um dos meus filhos se ocupa a sua maneira. Mas a rua que vejo agora não é essa rua de filme com pinheiros e parque e crianças brincando numa língua que não é a minha. É uma rua de asfalto longa. Nenhuma árvore. Prédios escurecidos pelo tempo, pela chuva e pelo abandono de ambos os lados da longa rua de asfalto. Nenhum canteiro de flor. Uma menininha acocorada. Um barquinho de papel no córrego feito da chuva recente no meio-fio. Moreninha, magrinha, pequena ela pros seus 10, 11 anos. Seus olhinhos marrons concentrados no barquinho correndo seguindo a água clara. Ela corre também pra ir buscar o barco feito de folha branca de caderno. Eu abraçaria essa menininha se ela não se assustasse e lhe diria pra continuar assim sonhando porque os anos vão passar velozes demais. Logo, logo fios brancos, que ela tentará esconder, teimosamente surgirão a quase cada novo dia. Jamais diria que essa menininha é feia ou burra ou desajeitada. Jamais diria porque ela, com esses cabelos de cachinhos, é mesmo muito lindinha. E com seus olhos brilhantes de inteligência e bondade é a filha que eu poderia ter. (Por quê, meu Deus, mudei de ideia um dia?) Eu jamais machucaria essa menina intencionalmente:  ela não merece e eu não teria coragem. Ao contrário, daria dois beijos estalados nas suas bochechas e diria que ela continuasse fazendo aquela outra coisa que adora e eu bem sei porque conheço todos os seus pequenos segredos: olhar as estrelas por horas a fio quando é de noite. Garantiria que ela teria janelas bem maiores que as do seu apartamentinho desse tempo, mas que se ela pensasse não ter tempo, que arrumasse um jeitinho, mesmo quando já tivesse passado dos quarenta porque, na verdade, nao pode haver coisa mais importante do que olhar as estrelas. Eu acho que cuidaria bem dela pra que ela pudesse continuar a ter muita coragem na vida. Ela é uma menininha valente a seu modo, mesmo com medo e chorona, mesmo manteiga derretida, como dizia sua vó. Eu jamais contaria de todas as preces sozinha num canto, de todas as lágrimas, de todo o medo do imprevisivel, de tudo o que ela vai querer fazer para proteger aquelas três crianças que serão seus filhos um dia. Também eles terão olhinhos marrons bem vivos e brilhantes. Também eles terão seus desafios numa terra feita de muito gelo e pouco sol, de lindas paisagens e grandes distâncias, de tantas oportunidades e tantas escolhas, mas igualmente de perdas que não se repõem. Desde muito cedo eles aprenderão que não se pode ter tudo e, por isso,  serão sensíveis aos outros, serão empáticos, amarão  livros,  chocolate e viagens. Como seus pais.  Não direi a essa menininha que os seus sonhos terão um preço e que parte do que ela é agora deixará pelo caminho. A custa do crescer que é uma fatalidade da vida. Sobretudo, não lhe direi da maldade nem da tristeza que há no mundo, da busca insana de poder e prestígio, da falta de amor… Não lhe falarei de doenças sem cura, de garotos recebendo notícias tristes antes do primeiro beijo da primeira namorada, da dor e da inveja e do choro contido dos pais na frente do filho ou do seu mundo desmoronando. Não lhe falarei de hospitais, de escolhas a serem feitas, de picadas de agulhas que ela sentirá como se fossem nela.  Não lhe falarei de frio na barriga nem de aperto no coração. Apenas ficaria de cócoras ao seu lado e a ouviria falar, contar suas histórias. Manteria meus ouvidos e meu coração bem abertos para o que me diria sua vozinha. E tentaria não esquecer nem mesmo  uma só palavra do que ela me diria nessa tarde nublada depois da chuva. 

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