Em alguma medida meus desejos do ultimo post se realizaram. Nele, eu pedi a nudez de todas as ilusões e a perda de privilégios. Falar sobre o tempo novamente nem era uma questão, mas desde o meio do ano tive que lidar com outro tipo de tempo: o tempo dos outros.
Não perdi os privilégios que tinha como homem, nem os que possuía como heterossexual, nem por ser branco, nem por fazer parte de uma classe média etc., os privilégios que perdi se dão na consciência de não fazer parte de um tempo em que se basta clamar noções como autonomia e individualidade. A dependência ficou ainda mais explícita.
Vivemos em uma sociedade que exalta histórias de sucesso e esconde dependências. Mas, na verdade, dependemos dos outros para tudo; somos um profissional melhor porque alguém fez a nossa faxina; podemos ser estudantes mais dedicados porque alguém passou nossas roupas; recebemos destaque porque cuidaram de nossa agenda. Nos tornamos importantes em uma área, não só devido às nossas qualidades individuais, mas também devido às pessoas que acreditaram nelas, empregando seu tempo e esforço para concretizá-las. Socialmente, hierarquias são traçadas e reafirmadas, reproduzindo e revelando uma estrutura que nos é anterior.
Individualmente, desde o diagnóstico me tornei cada vez mais dependente dos outros; algo que a escrita me ajudou a lidar. No entanto, o ano de 2019 se tornou um marco importante nessa minha história rumo à dependência. Desde fevereiro foram quedas, desmaios, tratamentos novos, expectativas e frustrações com medicamentos, e o mais significativo, três internações. Nelas, eu perdi muito da minha força muscular e capacidade pulmonar (que já não eram muitas), cheguei a um peso estimado de 59 kg.
Perdi meu equilíbrio mesmo sentado e muitas vezes, precisei de ajuda para me alimentar. As minhas instruções nem sempre eram seguidas por aqueles que se propunham a me ajudar: ou porque não conseguiam me entender pelas dificuldades na fala e pela falta de ar, ou porque não conseguia instruí-los a tempo sobre minhas necessidades. Nessa condição, aprendi meio à força ou em meio aos solavancos o verdadeiro significado de: “Seja feita a sua vontade”!
E, essa condição, era exacerbada pela incapacidade do “outro-cuidador” em ouvir, sendo isso diretamente proporcional à sua ansiedade, transformando o cuidado em algo que não lhe pertencia. Algo que não dissesse respeito a si a não ser pela relação que tinha com o “outro”, que só podia ser compreendido assim, como um “outro”. Nessa situação, o cuidar do “outro” é reclamado como um descuidar de si, em que essa necessária relação de dependência se corrompe em um rígido par de oposições.
De um lado, se encontra a figura do cuidador que se apresenta como disponível para auxiliar o cuidado a realizar uma atividade no menor tempo possível ou da maneira mais “limpa” possível. Sua missão é auxiliar o outro a romper as barreiras rumo ao que é considerado normal, mas não em auxiliá-lo a encontrar seu tempo próprio e sua própria forma de realizar uma atividade. Tal situação acaba resultando em uma infantilização do indivíduo, sob a ideia de teimosia, de alguém que se recusasse a aceitar o “certo”. Postura que, como pai, observo também em relação ao Francisco. Do outro, a figura do cuidado que se comporta como um pequeno (ou grande no meu caso) ditador, que vomita regras e preferências oprimindo e apagando a individualidade e as necessidades do cuidador, sugando a vida e o tempo do cuidador como mera reprodução da sua.
Mas há um momento em que as relações se tornam fluídas. Fora desses extremos, há um momento de libertação, em que a pessoa cuidada toma para si de volta sua autonomia. Nesse instante, sem tomar as posições como identidades fixas e aceitando as condições de cada um, é possível uma inversão: o cuidado passa também a ser cuidador, preocupando-se com o outro antes de si. Algo necessário igualmente em nossas relações sociais.
Lógico que, intelectualmente, é possível ter empatia por um estranho sem mesmo viver os dramas de sua vida. Algo que a literatura e os sites pessoais fazem bem ao transformar a realidade caótica e que nos parece sem sentido numa narrativa coerente, com início, meio e fim. Mas, sentindo na própria pele as limitações e potencialidades da dependência, a experiência com a doença e com o cuidado ganhou outra perspectiva. Nu, eu me tornei o outro. Nesse atual momento de isolamento coletivo, cuidar de si é ainda mais necessário, sendo uma forma obrigatória de cuidar do outro.
Assim, sendo ajudado em quase tudo, precisei reencontrar de novo o meu “eu”. O processo até aqui foi difícil, mas, depois de muito choro e muito desespero, saio desse “rio” com a sensação de limpeza. Mas, a nudez também é um exercício de se livrar de todas as mágoas e medos do passado, espero tê-las lavado também. O ano de 2019 foi cheio de turbulências, que espero ter superado com sabedoria, mas o que mais espero do próximo ano é cuidar (do meu filho, da minha esposa, da minha mãe, dos outros etc. ), independente do estado físico em que eu estiver, mais do que ser cuidado.