Uma das partes mais importantes de uma consulta médica é o exame clínico do paciente. Neste momento literalmente colocamos nossas “mãos, olhos e ouvidos” na pessoa a nossa frente para poder conhecer seu corpo, identificar as alterações relatadas em consulta e caracterizar objetivamente estas observações. Tudo sempre anotado de forma descritiva no prontuário médico, o documento no qual consta a história evolutiva de cada pessoa ao longo dos anos de acompanhamento.
A descrição dos achados de um exame clínico pode variar de escola para escola, de país para país e até de médico para médico. Por isso que, em muitas áreas da medicina e atendimento de saúde em geral, como fisioterapia, fonoaudiologia e odontologia, por exemplo, usam-se escalas clínicas para pontuar e categorizar o exame físico do paciente em atendimento de forma a padronizar a comunicação entre profissionais e estudos clínicos. Uma escala é uma uniformização do exame clínico transformada em tabela ou números, com intenção de que profissionais em locais diferentes unifiquem o atendimento, isto é, “falem a mesma língua da mesma forma”. Muitas áreas da neurologia possuem escalas específicas para algumas doenças:
- NIHSS (escala de AVC do NIH) e Rankin para doenças cérebro vasculares
- Hunt-Hess para hemorragia subaracnoide
- Escala de coma de Glasgow para avaliação de traumatismo crânio encefálico
- HoehnYahr e Escala Unificada de Avaliação da Doença de Parkinson (UPDRS)para doença de Parkinson
- Mini exame do estado mental, MoCA e Clinical Dementia Rating para avaliação cognitiva
- Epworth para sonolência excessiva
- Escalas de Beck e Hamilton para avaliação de depressão e ansiedade
- Entre muitas outras, dentro da neurologia e em outras especialidades
A escala EDSS (Expanded Disability Status Scale, ou Escala Expandida do Estado de Incapacidade, em português)1, 2criada pelo neurologista americano John F. Kurtzke nos anos 1980, tem como intenção padronizar a conversa entre profissionais que tratam de pessoas com EM. A EDSS é formada por um conjunto de fatores que leva em consideração a capacidade visual da pessoa, sintomas motores ou de perda de força, capacidade de coordenação, graus de perda de sensibilidade, capacidade de controlar urina e fezes, fadiga, sintomas cognitivos e autonomia de marcha e deslocamento.
A escala transforma objetivamente em um número de zero a dez as alterações do exame neurológico da pessoa com EM, onde zero significa um exame neurológico normal; três, dificuldades moderadas; seis, dependência de um apoio unilateral (bengala); seis e meio, uso de andador; sete, cadeira de rodas; e dez, falecimento decorrente de EM. Existemetapas intermediárias, como 1,0-1,5-2,0-2,5 e assim por diante, mas os pontos acima são os marcos mais objetivos (figura). Além disso, podem existir variações de até 1 ponto acima ou abaixo de um exame de referência sem significar piora ou melhora objetiva, e sim variação de exame neurológico de um médico a outro, ou até mesmo da hora ou temperatura do dia ou estado emocional com influencia na força de um determinado paciente.
A EDSS não é a única escala utilizada no atendimento de pessoas com EM. existem outras escalas clínicas, como a Multiple Sclerosis Functional Composite (MSFC)3, escala de severidade de fadiga4, inúmeras escalas de qualidade de vida5, escala de marcha em EM de 12 itens (Twelve Item MS Walking Scale (MSWS-12)6, Multiple Sclerosis Impact Scale (MSIS-29)6, e muitas outras. A EDSS também não é perfeita, pois valoriza muito a capacidade motora, especialmente de membros inferiores, não pontua objetivamente a fadiga nem alterações cognitivas. Mas mesmo assim a EDSS é a escala mais utilizada por vários motivos: é a que vem sendo usada a mais tempo, apesar de não medir diretamente qualidade de vida, sua pontuação tem correlação direta com grau de autonomia do indivíduo, tem ampla aplicação para estudos clínicos e, especialmente, é prática, simples e reprodutível.
Ainda sim, apesar de ter boa correlação direta com capacidade funcional e autonomia, há pessoas com EDSS baixo que tem grande comprometimento em sua qualidade de vida e capacidade de deambulação, por fadiga por exemplo, e pessoas com EDSS altos que estão muito bem adaptadas e com boa qualidade de vida. Além disso, a escala sozinha não dita a gravidade objetiva da esclerose múltipla de cada um, dependendo de outros fatores, como numero de surtos, padrão de ressonância magnética e tempo de convivência com EM.
Necessário reforçar, o preenchimento da escala não é obrigatório para um bom atendimento clínico e é muito mais importante em ambientes de pesquisa que no dia-a-dia do clínico. Ainda que praticamente todos os neurologistas que atuem no tratamento de pessoas com EM conheçam e apliquem escala, em uma consulta de rotina ambulatorial ela não é absolutamente necessária, a não ser que você esteja em um ambulatório acadêmico que realize pesquisas clínicas, onde a uniformização da “conversa” entre clínicos seja necessária. O mais importante, aí sim, é que seu médico sempre te escute e te examine, e desta forma compare seu estado atual com suas anotações de consultas anteriores.
Referências
- Kurtzke JF. Rating neurologic impairment in multiple sclerosis: an expanded disability status scale (EDSS). Neurology1983; 33: 1444-1452. 1983/11/01.
- Kurtzke JF. Further to the origin of EDSS (Response to: L. Kappos et al: “On the origin of Neurostatus” Multiple Sclerosis and Related Disorders 2015; 4: 186). Multiple sclerosis and related disorders2015; 4: 186. DOI: 10.1016/j.msard.2015.04.007.
- Cutter GR, Baier ML, Rudick RA, et al. Development of a multiple sclerosis functional composite as a clinical trial outcome measure. Brain1999; 122 ( Pt 5): 871-882.
- Krupp LB, LaRocca NG, Muir-Nash J, et al. The fatigue severity scale. Application to patients with multiple sclerosis and systemic lupus erythematosus. Arch Neurol1989; 46: 1121-1123.
- Drulovic J, Bursac LO, Milojkovic D, et al. MSQoL-54 predicts change in fatigue after inpatient rehabilitation for people with multiple sclerosis. Disabil Rehabil2013; 35: 362-366. DOI: 10.3109/09638288.2012.704122.
- Motl RW, Schwartz CE and Vollmer T. Continued validation of the Symptom Inventory in multiple sclerosis. J Neurol Sci2009; 285: 134-136. 2009/07/14. DOI: S0022-510X(09)00654-6 [pii]
10.1016/j.jns.2009.06.015.