Em uma partida de futebol ou qualquer outro jogo de esporte coletivo, as torcidas são divididas em dois lados distintos. Enquanto uns vibram pelo time A, outros preferem o time B. Em um nível macro, essa separação é bem-vinda. Afinal, agregam sob uma mesma bandeira ou distintivo pessoas interessadas em defender e motivar um dos lados e ridicularizar e, se possível, enfraquecer o adversário. No entanto, as afinidades são eletivas e como toda igualdade, essa também é fruto de uma escolha.
Aproximando mais a lente, fechando o foco, talvez aquela pessoa que está vibrando ao seu lado não seria sequer cogitada como um amigo em potencial, pois, além do time, pouco teriam em comum. Divergências sobre estilo musical, alimentação, posições políticas etc., os tornariam mais afastados do que próximos. Se os critérios fossem outros, talvez você se sentisse mais próximo de alguém presente no outro lado da arquibancada, torcedor da outra equipe. O que vale, na verdade, é a diferença e a igualdade que escolhemos ocultar e exaltar.
Muitos de nós se uniram sob a noção de “esclerosados”. Mas será que esse “rótulo” é suficiente para abarcar os diferentes tipos de indivíduos e experiências subjetivas existentes entre aqueles que têm Esclerose Múltipla? Será que o termo é satisfatório para compreender diferenças de gênero, classe social ou localização geográfica? Em nome de uma abstrata igualdade de direitos, às vezes, declarar-se paciente de EM pode ser uma desvantagem. Devido a um critério objetivo (a existência ou não de uma doença) passamos dificuldades, seja de aceitação ou adaptação, em nossos empregos, escolas, planos de saúde, bancos etc. e, se possível, escondemos esse elemento até quando der.
Além disso, tais categorizações poderiam gerar figuras estereotipadas. Certos tipos de comportamentos seriam esperados de nós e sua recusa causaria frustração ou surpresa, como representações que não cumprem bem a imagem pré-concebida. Por mais que tentem nos impor as vestes do coitadinho ou do ser superior que se supera e serve de exemplo aos outros, nem sempre a carapuça nos cai bem. Sei que é difícil aceitar, mas às vezes fazemos as coisas porque queremos e não para mostrar algo pra sociedade.
Esse é o risco das generalizações. Às vezes, tais características até existam na vida real, mas será que devem atingir o âmbito de explicações universais? O fato de você conhecer um “gordinho” simpático é suficiente para afirmar que todos os “gordinhos” são simpáticos? Uma “baixinha” invocada representa todas as mulheres de baixa estatura? O convívio com um homem bagunceiro é razoável para decretar que todo homem é bagunceiro? Sendo mais próximo à “gente”, será que o caso de conhecer alguém que está bem ou mal “da Esclerose” (entre aspas porque nunca é só a doença) é necessário para concluir que todos esclerosados estão na mesma situação e estágio?
Por isso a literatura, os blogs e as narrativas pessoais são tão importantes. Mostram não uma categoria abstrata, um CID, mas o lado humano dessa experiência. A esclerose ganha um rosto e até um endereço de e-mail para contato. Esses relatos não nos deixam cair no perigo de uma história única, de achar que a esclerose é uma coisa homogênea, a mesma e igual para todos. Às vezes, o número de lesões na ressonância ou os laudos médicos não conseguem explicar a fadiga que nos derruba, os formigamentos que sentimos ou como ficamos no calor. Imagens e escritos alheios não são suficientes para expressar o que passamos.
Todavia, devemos tomar cuidado para não cairmos em um subjetivismo absoluto. Relatos de experiências individuais podem obscurecer mecanismos de exclusão presentes na sociedade, que afetam a todos e principalmente grupos excluídos, seja devido ao gênero, à raça, à classe social, ao credo, à deficiência etc. Caso achemos que nossas experiências são universais, acabamos ignorando as dificuldades alheias, o mau funcionamento e adaptação de nossas instituições, os discursos do senso comum social e aqueles que são evocados sob a pretensão de cientificidade.
Igualmente, com uma individualização exagerada corremos o risco de deslegitimar a luta alheia. O fato de não enfrentarmos os mesmos problemas não nos dá o direito de negar todas as batalhas e necessidades dos outros. Não é porque você não precisa de rampas, cotas, vagas preferenciais, barras ou cômodos adaptados que tem a liberdade para se levantar publicamente contra essas coisas e as pessoas que precisam delas. Escrever coisas como “ainda bem que não estou em uma cadeira de rodas”, pode parecer uma ofensa a quem esteja nessa condição. Eu, por exemplo, estou usando frequentemente esse auxílio: será que por isso sou mais azarado ou desfavorecido? Há de se pensar. Você pode até agradecer, privadamente, por não precisar de qualquer utensílio de mobilidade mas, por bom senso, talvez seja melhor não declarar isso aos quatro ventos. É necessário ter cumplicidade e compromisso com as nossas palavras e ações.
Contraditoriamente, precisamos falar unicamente por nós e por todos aqueles que representamos. Um discurso que vai além dos dramas, alegrias e tristezas privadas, mas que exerça uma função pública. Que, ao mesmo tempo, seja maior que cada experiência individual e menor que essa figura coletiva. Para exigirmos certas coisas é preciso admitir a utilidade de reconhecer um certo “tipo ideal de esclerosado”. Mesmo com todos os problemas que uma generalização pode acarretar, ela ainda é importante para combater os mecanismos sociais de exclusão e as implicações existentes na ausência de qualquer distinção. Para isso, carecemos de uma categoria, uma denominação comum, capaz de ignorar certas diferenças e exaltar certas semelhanças. É necessária uma identidade de grupo. Somos todos esclerosados e responsáveis pelo que dizemos.
Esse é o lado positivo das categorizações. Por mais que reconheçamos a heterogeneidade em seu interior, encontramos, sob um mesmo rótulo, apoio, solidariedade e força para lutar batalhas que nem sempre são nossas diretamente. Temos recentemente um caso exemplar sobre isso. Sob o risco da saída do “Avonex” do protocolo para Esclerose Múltipla do SUS, nos unimos para um mesmo fim, mesmo que utilizássemos outra medicação, resultando na segunda maior Consulta Pública da história e no reconhecimento da necessidade de uma melhor avaliação do pedido e das pesquisas indicadas. Mostramos que #JuntosSomosMaisFortes. Agora, quando muitos de nós somos afetados pela falta de medicamentos na Farmácia do Estado, novamente essa figura coletiva emerge em favor de todos, na busca de uma resolução para o problema.
Esse foi só um exemplo da força que temos enquanto grupo. Mesmo levantando vozes individuais, é preciso reconhecer que estamos falando em nome de todos e que isso nos torna mais poderosos. Esse, no entanto, é o objetivo, não a realidade. Muito ainda precisa ser feito. Quando essa mudança ocorrer não precisaremos mais apontar nossas dessemelhanças para sermos recebidos em uma sociedade pouco agregadora e em que o ideal de igualdade busca ocultar e, às vezes, exterminar ou encarcerar o outro diferente. Uma sociedade que precisa incluir é, ao mesmo tempo, uma sociedade assumidamente desigual. Não nos sentiremos mais iguais na adoção de normas igualitárias e critérios objetivos, mas sim no reconhecimento da diversidade social. Até lá precisamos nos unir para combater os obstáculos que vêm à frente. Aí sim poderemos ser tratados como indivíduos, pois as diferenças não farão mais diferença.