Nota sobre o artigo “Novo medicamento bloqueia esclerose múltipla durante 48 semanas”

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Nota sobre o artigo “Novo medicamento bloqueia esclerose múltipla durante 48 semanas” publicado no site http://www.sonoticiaboa.com.br em quarta-feira, 29 de maio de 2019

Por Dr. Denis Bichuetti.

 

Escrevo a pedido da equipe da AME para comentar sobre este artigo, publicado recentemente.

Habitualmente eu costumo “traduzir” a linguagem científico para uma forma de comunicação mais simples, mas desta vez farei uma observação mais técnica, para demonstrar um pouco como médicos e pesquisadores interpretam e analisam textos científicos.

Trata-se de um trabalho científico do tipo estudo clínico prospectivo controlado com placebo, isto é, um estudo que compara dois grupos de paciente, um com um medicamento, no caso o Evobrutinib (que eu não conhecia, mas não me impede de analisar o texto de forma científica), fumarato de dimetila (Tecfidera®) e um grupo com uso de placebo (preparação neutra quanto a efeitos farmacológicos). É um modelo padrão já conhecido em estudos que avaliam medicamentos para pessoas com esclerose múltipla, onde estes dois grupos são acompanhados por 24, 48 ou 96 semanas (6, 12 ou 24 meses) e os efeitos do medicamento ou placebo são comparados entre os grupos, como número de surtos, exame neurológico e aumento de lesões em ressonância magnética. O estudo é patrocinado por uma empresa farmacêutica, como muitos outros deste modelo. Vamos a análise crítica do artigo, como assim chamamos em reuniões de pesquisa e entre colegas e alunos. Os tópicos abaixo seguem exatamente esta forma de análise, com meus comentários junto:

  1. Tipo de estudo: prospectivo, controlado por placebo com medicamento de comparação. Isso significa que um grupo recebeu placebo, um grupo recebeu Evobrutinib (dividido em 3 subgrupos de doses diferentes) e um grupo recebeu Fumarato de Dimetila. Isso está adequado, é um bom desenho e segue o modelo de muitos outros estudos que levaram à aprovação de um medicamento.
  2. Tamanho da amostra: o estudo incluiu um total de 267 indivíduos, o que esta adequado para um estudo preliminar como este, que chamamos de fase 2. Os estudos de fase 3, aqueles que levam aprovação final de um medicamento, caso o resultado seja positivo, costumam incluir de 2.000 a 3.000 indivíduos.
  3. Objetivos primário: todo estudo precisa de um planejamento para que sua análise final não seja modificada de acordo com o resultado observado. Como um jogo ou uma competição, não se mudam as regras no meio do caminho, por isso descrever os objetivos é importante, e eles não podem ser modificados no meio do estudo, e quando o são, implicam um importante viés, isto é, pode fazer o resultado parecer melhor do que deveria. Neste estudo, o objetivo primário foi a diferença no número de lesões ativas em ressonância magnética (aquelas que realçam com contraste) entre seu começo e fim. Aqui já temos algo incomum, pois sabemos que nem todas as lesões terão realce por contraste, e não analisar o acúmulo total de lesões faz com que não se “olhe” o todo da doença. Isso me incomoda, pois é diferente de outros estudos, o que faz com que não possamos comparar esta droga diretamente com outras.
  4. Objetivos secundários: são objetivos pré-definidos, como acima, mas de menor relevância, assim determinado pelos investigadores. Neste estudo foram definidas medidas clínicas como número de surtos, mudança de exame neurológico e segurança.
  5. Critérios de inclusão e exclusão: lembra das regras pré-definidas acima? Então, este ponto é onde se escolhe, previamente, quais são os indivíduos que podem participar e quais não. Isso é importante para termos uma amostra homogênea de pessoas com idade semelhante, tipo de doença, tempo de doença e tratamentos prévios, por exemplo. Afinal, não se pode comparar um paciente com EM remitente recorrente com um com EM progressiva, pois sabemos que são um pouco diferentes. Neste estudo foi bem padronizado, seguindo o modelo de outros, podiam participar pessoas com EM remitente recorrente e secundária progressiva, entre 18 e 65 anos e que aceitaram participar. Mas aqui vai um comentário, colocar em um mesmo estudo pacientes com forma remitente recorrente e secundária progressiva pode ser considerado um viés de seleção, especialmente com o objetivo primário proposto, pois pessoas com forma secundária progressiva costumam ter menos lesões que realcem com contraste. Já imaginou se, por acaso, tem mais destes pacientes no grupo tratado com o medicamento novo? O resultado deste grupo será obviamente melhor, se o desfecho for apenas a mudança de ressonância com foco em lesões que realcem e não em todas as lesões.
  6. Resultados: ah, eu li no site e na conclusão do resumo que o resultado foi positivo, legal né? Mas… vamos olhar os resultados de forma mais pormenorizada:
    1. Primeiro olhamos o número global de pacientes, quase 10% dos pacientes designados ao grupo do remédio novo abandonaram o estudo, as razões não ficam claras, mas quando isso acontece é por efeito colateral. Nenhum paciente que recebeu Fumarato de Dimetila abandonou o estudo.
    2. Grupos de estudo: paciente no grupo do Evobrutinib tinham um menor número de surtos antes do estudo e menos lesões ativas em ressonância. Peraí, mas isso significa que os pacientes que receberam o remédio novo tinham uma doença menos ativa, mais leve? Sim, e isso implica um viés de seleção, claro que vão responder melhor ao remédio.
    3. Resultado de ressonância: sim, o resumo fala que o grupo Evobrutinib foi melhor. Mas tem algumas questões. Primeiro, no grupo de Fumarato de Dimetila teve um paciente com 160 lesões que realçavam (160! Eu nunca vi isso, é muita lesão!), isso “puxa” o resultado do grupo todo para fora da curva. É como se você tivesse uma classe com 10 alunos, 9 deles com altura entre 1 metro e 50 e 1 metro e sessenta e um com 2 metros de altura. A altura deste único aluno mais alto não representa a média da turma, chamamos este individuo de um “outlier” ou “ponto muito fora da curva”. Quando isso acontece esta pessoa tem que se retirada da análise, pois este único individuo “puxa” todo o resultado do resto do grupo. Isso é um viés de análise, e pode invalidar o estudo como um todo. Além disso, o grupo placebo foi melhor que Fumarato de Dimetila, o que é estranho, pois sabemos que este também é um bom remédio. Viés de análise. Por outro lado, em relação ao numero de surtos, Evobrutinib foi igual a Fumarato de Dimetila. Que bom!
    4. Existiram mais eventos adversos no grupo que recebeu Evobrutinib.
  7. Limitações: não existe estudo perfeito, e se este tema não for citado no texto, mostra que os autores não souberam, ou não quiseram, evidenciar as possíveis falhas. Neste estudo, os próprios autores assumem que este estudo possuí limitações em comparação a outros: pacientes mais velhos que outros estudos e com poucos surtos. O caso acima descrito de um único paciente “puxar” todo o resultado de um grupo é uma forte limitação de interpretação e, apesar do resultado positivo quando comparados os dados de ressonância do grupo Evobrutinib versus placebo, não houve diferença no úmero de surtos e no exame neurológico.

 

Veredicto e opinião pessoal: temos um estudo clínico de fase 2 como muitos outros, com falhas em sua metodologia e especialmente análise de resultados que, em conjunto, minimizam muito o efeito terapêutico. Parece que o estudo foi “desenhado” para se observar este resultado, o que não é muito incomum hoje em dia, pois custa muito caro realizar estes estudos para depois ter-se um resultado negativo. Minha interpretação dos dados científicos é que o  medicamento pode até funcionar, mas não parecer se melhor do que aqueles que já temos para se arriscar um estudo longo de fase 3, e a prova disso é que não há nenhum registro de estudo fase 3 desta medicação no https://www.clinicaltrials.gov/, base de dados internacional de todos os estudos clínicos em andamento.

 

Por fim, retornamos ao ponto de que toda notícia muito fantástica deve ter sua veracidade contestada. Sim, vivemos em um mundo de economia e informação colaborativa e nem sempre eu, médico, tenho acesso aos últimos resultados de tudo, mas todos os pacientes podem ter certeza que se existir um remédio com resultado muito diferente ou excepcional, os adequados meios científicos irão reporta-lo aos bons médicos muito antes do que qualquer site generalista. E lembro, “não existe almoço grátis” (uma expressão que usamos entre colegas), um remédio muito forte que atue sobre o sistema imunológico não será isento de efeitos colaterais proporcionais ao seu efeito. Então sejamos mais científicos na nossa análise de artigos, antes de alta elevação de ânimos, para o bem de todos, lembrando que já aprendemos muito nos últimos 20 anos, que já temos medicamentos com boa eficácia e que sabemos que medidas individuais de saúde geral podem amenizar a EM.

O maior desafio ainda é fazer com que isso chegue ao maior número de pacientes, se não a todos!

 

Dr. Denis Bichuetti: Formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e Especialista em Neurologia pela Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, onde hoje é professor. 

Trabalha na área de neurologia clínica com um carinho especial por pessoas com esclerose múltipla, procurando ajuda-las não só como clínico mas como pesquisador, ensinando novos médicos no cuidado de pacientes e colaborando com organizações de pacientes.

 Hoje é também o Consultor Científico da AME.

 

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