EM e Paternidade (Parte IX) – Reaprendendo a aprender

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O filósofo alemão Friedrich Nietzsche divide em três etapas o desenvolvimento do espírito humano: como esse se transforma em camelo, do camelo em leão e, finalmente, torna-se criança. É assustadora como essa inversão aos valores da prepotente sociedade europeia do século XIX – que elegeu o homem, branco, europeu como o auge da civilização e o objetivo de toda história –, estava correta.

Ao contrário do adulto, com seus valores formados e solidificados, a criança representaria a pureza, a inocência, o esquecimento, um novo começar. O camelo era a representação de um espírito forte, que suportaria e carregaria o que havia de mais pesado. Transformado em leão, quer conquistar sua liberdade e aliviar sua carga, tornando-se senhor de si e de seu próprio “deserto”.

Em seu percurso, encontraria o dragão do “tu deves” (que no Brasil, podemos chamar de golpe ou elite do atraso). Contra o leão que pretende mostrar sua própria vontade e exclama “eu quero”, o “tu deves” se põe a frente, impedindo qualquer avanço. Dizendo representar valores tradicionais e já existentes nada de novo poderia existir. O dragão deseja que todos permaneçam camelos, apenas bestas de carga, para continuar servindo-o e adorando-o.

Com a vitória do leão e sua liberdade do dever dos valores engessados, de um mundo que “é o que é”, chegamos ao último estágio: o leão se transforma em criança. Só se despindo da razão pronta e de uma lógica adulta, os valores tradicionais, podemos compreender a infância como fim da jornada da existência. A EM e as dificuldades que ela me propiciou me possibilitaram a olhar a questão por uma ótica diferenciada.

Tenho aprendido muito com o Francisco; a ser uma pessoa melhor, pelo menos. Entendo perfeitamente o porquê da criança ser eleita a transformação final do homem. Observá-lo tem me fornecido ricos ensinamentos, não só para a vida, mas também no convívio com a EM e a deficiência. Não são todos os pais que têm o privilégio de reaprender observando alguém descobrindo novos mundos, novas possibilidades, novos sabores.

Livre de nossas ideias engessadas, dos nossos “jeitos certos” de fazer tal coisa, a criança é uma eterna criação, é movimento constante, é tentativa e erro, é uma contínua afirmação. Se não consegue empurrar um botão com o dedão, tenta com os indicadores das duas mãos; se não abre tal coisa uma hora, tenta de novo, de novo e de novo outra vez. Não há culpa ou sentimento de fracasso. A criança apenas repete o gesto ou acha alguém que consiga fazer.

Também não há tempo. O Francisco tem me ensinado muito sobre isso também. É o tempo deles, de enjoarem de uma comida ou de uma brincadeira. Não adianta organizar um compromisso para daqui a uma hora e esperar pontualidade. É melhor organizar por tarefas: depois que eles acordarem; depois da “papinha”; antes do banho etc. Estão fora de um tempo progressivo e de um relógio indiferente. As tarefas duram o tempo que durarem.

Também não adianta culpas e expectativas exageradas. Cada um no seu tempo! Quando falam: ah, mas ele tem 1 ano e 3 meses e “ainda” não caminha! Eu brinco, você vê, eu vou para 35 e também não. Se não há um tempo progressivo, também não há futuro. Quando o Francisco está realizando uma ação repetidamente ele não pensa que deve fazê-la perfeitamente no futuro; quando chuta um “gol”/bola não é porque está nascendo um novo craque, a criança simplesmente é! Nós é que aceitamos que o mundo nos convença de sermos fracassados, que somos o que esperam de nós e aceitamos a culpa que nos impõe.

Outra coisa que é interessante é a relação com o cuidado. A criança pequena é um ser desprotegido, mas não sabe da sua fragilidade. Ela não te exige nada, cuidado, proteção. É você quem fica atento para deixar que não faça algo que seja perigoso e se desdobra voluntariamente pelo seu bem.

Mas enfim, como essa convivência com o Francisco tem sido proveitosa para a forma que lido com a EM? Encontro-me em uma situação em que tenho dificuldades em fazer coisas que eram simples anteriormente. Mesmo as pioras não são certezas inflexíveis; a vida é uma constante afirmação, uma novidade, enfrentamento com o presente. Como a criança você se encontra em uma situação de experimentação e se sente mais corajoso para ir a lugares desconhecidos, fazer as coisas de outras formas, provar novas comidas…

Igualmente, como o Francisco, aprendi a ser senhor do meu próprio tempo. Meu corpo não funciona no tempo do relógio. Não há como exigir pressa na realização de uma tarefa ou perfeição em sua execução: vou demorar mais para abrir um remédio; vou deixar comida cair durante o almoço; vou me cansar mais do que o normal para ficar de pé em uma transferência. Mas esse é o meu ritmo. Não me cobro por fazer algo mais rápido ou perfeito; não aceito culpas; não tenho ou desejo que tenham expectativas; não exijo ser cuidado. Me preocupo apenas em ser.

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