EM e Educação (Parte I) – Experiências diversas

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Como potenciais professores e pessoas preocupadas com as questões relacionadas à educação, assuntos sobre esse tema frequentemente aparecem em conversas aqui em casa. Não apenas no que tangem às nossas experiências pessoais (as diferenças, as dificuldades, facilidades etc.) especificamente com a EM e as limitações que a doença nos proporcionou, como em uma reflexão sobre o que se poderia fazer para adequar nossa estrutura educacional para melhor receber pessoas com uma deficiência, seja ela temporária ou permanente.

Além disso, a vida escolar, do maternal à pós-graduação, é um celeiro riquíssimo de contatos e de sociabilidade. Ou seja, o aprendizado não se dá apenas dentro de uma sala de aula, nos ensinamentos de um professor, mas no convívio com a diferença e no respeito à alteridade. Depois de pensar o trabalho, gostaria de pensar a educação mais especificamente. Até porque muitas pessoas recebem o diagnóstico em meio a uma graduação e no decorrer da vida universitária.

Para pensar a relação entre EM e educação, não poderia ignorar o privilégio de ser casado com uma doutora em educação, com ênfase nos assuntos sobre inclusão e deficiência. Assim, convidei a Bruna para pensar essa questão comigo. No entanto, antes de tudo, gostaríamos de falar mais especificamente sobre nossas experiências pessoais; como o contato com a deficiência se deu em nossas vidas e vidas escolares e como o diagnóstico e as limitações da Esclerose Múltipla atrapalharam e foram auxiliadas (ou dificultadas) pelo comportamento de professores e alunos.

Jota

Na minha vida, a deficiência era uma coisa distante, como se fosse algo que não me pertencia, que seria característica do Outro. Durante o período escolar, lembro de poucas vezes ter tido a oportunidade de conviver com a deficiência. Na época em que estudava ainda existiam as chamadas “classes especiais”, em que pessoas com atrasos intelectuais ou deficiências eram colocadas. Dessa experiência distante lembro-me ainda de duas figuras: o Atílio e o Caio. O primeiro por ser primo da minha namoradinha da quinta série e o segundo por causa de suas intervenções engraçadas.

Na época o programa “Topa tudo por dinheiro” do Silvio Santos estava estreando e era febre. O bordão do apresentador e os aviõezinhos de cédulas lançados ao público frequentavam as mentes dos espectadores. O Caio certamente era um desses. No meio de uma aula, ele entrava sem convite na sala e gritava: “quem quer dinheiro?”. Os alunos riam e, como a plateia do programa, respondiam “eu!”. Durante a Escola, esse foi meu convívio mais direto com pessoas com deficiência.

Como o Caio, a deficiência era, na minha vida, um Outro que entrava em meio a lógica e continuidade de uma situação, fazia sua intervenção e saía deixando que, sem muita reflexão sobre aquilo, a vida pudesse continuar sobre sua aparente normalidade. E assim continuou sendo no ensino superior. Tanto na faculdade de Música, quanto na de História, não tive nenhuma experiência marcante com a deficiência. Embora, a segunda me deu maiores possibilidades de conviver e refletir a respeito da diversidade social.

Em 2011 e 2012, quando cursava as últimas matérias que restavam para terminar a graduação em música, já sentia que algumas funções no meu corpo não iam tão bem. Tinha dificuldade em caminhar longas distâncias, meu equilíbrio já não era tão bom, para subir e descer escadas precisava apoiar nos corrimãos e minha motricidade fina nem de perto era a mesma. A palheta vivia caindo da minha mão, já não conseguia fazer alguns acordes simples ou tocar com a mesma velocidade. Nessa situação, a compreensão de meus professores, principalmente das disciplinas práticas, foi essencial. Agradeço profundamente a sensibilidade que tiveram e as oportunidades que me forneceram. Sabia que não conseguiria cumprir as exigências esperadas de um guitarrista que estava se formando naquela área, precisaria de uma avaliação diferenciada.

Embora não tivesse tantos contatos com pessoas com deficiência na universidade, foi durante a graduação em História que senti mais fortemente os primeiros sintomas do que viria a ser diagnosticado como Esclerose Múltipla. Desde 2010, já sentia uma piora no equilíbrio e na caminhada. Naquele ano deixei de conseguir correr, mas como não era nenhum maratonista mesmo, não dei muita bola. Achava que era consequência de um velho problema de joelho que tinha desde a adolescência. Em 2011, no último ano da faculdade a coisa começou a ficar mais séria e atrapalhar bastante. Dessa forma, comecei a fuçar mais na internet e procurar médicos que me indicassem o que poderia ser.

No início de 2012, na mesma semana da minha formatura, recebi o diagnóstico de Esclerose Múltipla. Ainda não era algo fechado, mas uma suspeita, que se confirmou no final daquele ano. Nessa época havia iniciado o mestrado e, enquanto fazia minha pesquisa na pós-graduação, corria atrás de um diagnóstico que explicasse as minhas dificuldades. Uma série de consultas e exames compartilharam espaço com os documentos do século XVII.

Brinco que a minha sorte foi descobrir a EM já no mestrado. Não sei bem se foi uma “sorte”, mas cumpridas as disciplinas do primeiro ano pude realizar a pesquisa em casa. Em 2013, quando a coisa começou a piorar mais já não precisava ir tanto na faculdade. Seria difícil conciliar EM e formação universitária, caso ainda estivesse na graduação e precisasse cumprir os compromissos diários do curso.

Com adaptações e esforços coletivos e individuais consegui a titulação. Em 2014, me mudei para Porto Alegre e em 2015 comecei o doutorado na UFRGS. Novos problemas emergiram a respeito das questões de acessibilidade na Universidade (eu e a Bruna chegamos até a escrever uma Carta Aberta como denúncia). A partir desse ano temos participado mais ativamente de eventos, discussões e projetos de inclusão da pessoa com deficiência no ensino superior e, mais especificamente, na pós-graduação. Sabemos que muito ainda precisa ser feito, mas temos saído de reuniões otimistas e com espírito renovado.

 

Bruna

Ao contrário da vivência do Jota, a deficiência sempre foi algo muito presente na minha vida, desde a infância. Minha irmã, que é dois anos mais velha que eu, tem deficiência intelectual. E minha mãe, que é fisioterapeuta, trabalhava em APAE. Muitas vezes eu saía da escola e ia pra APAE ficar com a minha mãe, brincava com as crianças no pátio e conhecia todos os amiguinhos da minha irmã. Para mim eles eram apenas crianças. Alguns andavam de uma forma diferente, outros não falavam com a mesma facilidade que eu, mas eram meus amigos e ponto. Um dia, minha irmã perguntou pra minha mãe porque ela não estudava na mesma escola que eu. E foi lutando muito pra conseguir que ela partilhasse do mesmo espaço que eu que uma classe especial foi criada na minha escola. Nessa turma, as crianças com alguma deficiência ficavam até que pudessem ir para outra classe. E foi vendo a turma da Renata na hora do recreio e nas atividades que eles faziam junto com as demais turmas (esportes, coral, música), que eu entendi que ela era diferente de mim. Ou, que pelo menos as pessoas a consideravam não só diferente, mas inferior a mim.

Certo dia, ouvi uma professora, a minha professora da segunda série dizendo que não sabia o que fazer, porque no ano seguinte ela ia receber alguns dos “louquinhos da Vani”. A prof. Vani era a professora da Renata. Logo, os louquinhos pra prof. Janice eram os amigos da minha irmã. Aquilo doeu. E doía muito ver eles sendo tratados de forma diferente. Porque não era um diferente que promovia inclusão. Era um diferente de chacota mesmo. Mas nenhum olhar diferente, nenhum comentário preconceituoso, fez minha mãe desistir da Renata. Acho que ali comecei a internalizar a inclusão como algo necessário para minha vida. Porque o Outro não era o Outro. O Outro era minha família. O Outro era eu. O Outro era minha mãe ouvindo de professores que devia ser difícil ter uma filha com altas habilidades e outra com deficiência cognitiva. E pobre dela, que tinha que dosar em casa para que eu não me sentisse superior nem à Renata, nem a nenhum coleguinha e para que a Renata não se sentisse menor ou pior que ninguém. Parabéns mamãe, você conseguiu!

Bom, aí, quando eu tava no ensino médio, eu tive o diagnóstico de EM. Foi no segundo ano do ensino médio que eu perdi os movimentos de braços e pernas e parte da visão. Depois de quase um ano de diagnóstico a EM veio com tudo e me tirou muita coisa. Perdi algumas muitas semanas de aula e até cheguei a achar que perderia o ano escolar. Para mim, que sempre fui muito dedicada, era bem difícil. Nesse período em que eu ficava uma semana em casa e outra no hospital, e foi assim por uns três meses pelo menos, a escola só ficou sabendo que eu estava doente porque minha mãe entrou em contato. Porque pra escola, parecia não importar, desde que a mensalidade estivesse paga. Os “amigos” sumiram todos. Aquelas meninas que andavam comigo dia e noite sumiram. Acho que não devia ser interessante ter uma amiga doente. E quando eu voltei à escola, eu tive vários problemas de adaptação.

Primeiro com os professores, que viviam na lógica do vestibular e da alta performance em provas. Eu mal conseguia ficar uma manhã inteira sentada sem morrer de dor. Eu tinha urgência urinária e cheguei a fazer xixi nas calças numa aula porque o professor não me autorizou a sair. Eu não conseguia pegar uma caneta na mão direito, então parecia que eu não estava lá, já que eu não podia fazer quase nenhuma atividade. Conheci novas pessoas da turma da escola, que passaram a ser minha companhia, meu apoio na escola e que faziam com que os dias fossem menos difíceis. Mas eu, que sempre amei ir pra escola, contava os dias pro final de semana, pras férias, pra acabar duma vez aquele inferno. Definitivamente, a escola em que eu estudei não sabia absolutamente nada sobre inclusão. E é impossível lembrar desse tempo com algum carinho ou saudade. Foi nessa época também que eu tive a maior depressão da minha vida e cheguei a pesar 50kg. Foi nessa época que eu pensei que era melhor se eu não existisse. E não era por conta da EM e dos seus sintomas. Era pela forma como o lugar que devia me acolher queria mais era me ver longe dali. O dia da minha formatura do ensino médio foi um dos mais felizes. Era uma libertação. Me senti saindo de uma prisão.

Eu jurava que não passaria no vestibular. Afinal, eu mal conseguia estudar nesses dois últimos anos do ensino médio. Mas, ter facilidade de aprendizado tem lá suas vantagens. E eu passei no vestibular para Publicidade e Propaganda. A universidade, apesar de todos os problemas arquitetônicos com que me deparei (não tinha elevador no meu prédio, foi uma luta tremenda conseguir transporte acessível pra chegar às aulas), foi meu lugar de recriação de identidade. Foi na universidade que consegui ir me encontrando novamente, com a ajuda dos amigos novos, colegas, professores, funcionários. Lá eu tinha espaço pra falar da EM abertamente com as pessoas, e mesmo tendo tido colegas que não entendiam, a maioria tinha interesse em aprender sobre a EM. E a gente foi aprendendo juntos. Os professores entendiam as adaptações necessárias para minhas avaliações, afinal, as vezes eu precisava faltar uma ou duas semanas de aula e eles me davam alguns dias a mais para entregar trabalhos. Nunca usei, mas era importante ter esse apoio. Durante a faculdade eu fiz diversos estágios que foram importantes para definir o que eu viria a fazer e, principalmente, o que não faria depois de formada.

Antes mesmo de acabar a faculdade, eu sabia que queria seguir a vida acadêmica, fazer pesquisas, dar aulas etc. Mas ainda esperei dois anos depois de formada, trabalhando na área de comunicação, até entrar no mestrado. E foi no mestrado que eu descobri os Disability Studies, traduzindo, os Estudos sobre deficiência que, resumindo muuuuuito resumidamente, é um campo de pesquisa que olha para a deficiência a partir de um ponto de vista social e não médico. Era tudo que eu precisava para me sentir mais do mundo. Foi nos estudos culturais e nos disability studies que encontrei pessoas para dialogar e me empoderei sobre questões que já eram importantes desde a minha infância, como a inclusão, a valorização positiva das diferenças etc. Fiz minha dissertação de mestrado nessa área e entrei no doutorado para continuar esses estudos.

Foi no doutorado em Educação que as questões de inclusão ficaram mais fortes para mim. Além disso, minha militância no movimento das pessoas com deficiência e minha atuação como blogueira e nas associações de EM já estavam muito mais claras para mim como algo sem volta. Mas voltando ao tema da educação, no doutorado eu passei a ter muitos colegas com deficiências diversas (surdos, cegos, pessoas com deficiência motora) e, ao começar a dar aulas, passei a ver o outro lado, o lado de quem prepara o currículo, as aulas etc. E foi estando do lado de cá que ficou, cada vez mais claro pra mim que todo o sofrimento que eu vivi no meu ensino médio era absolutamente desnecessário. Que faltou, para os meus professores, uma formação melhor e, também, uma empatia como ser humano. As pessoas vivem dizendo que incluir na escola é difícil. Talvez até seja, porque ninguém está disposto a mudar estrutura arquitetônica, estrutura curricular, estrutura de pensamento e afetiva. Porque se estivessem, honestamente, não seria difícil não.

Mas isso é assunto prum próximo post. Seguiremos a conversa… Esse foi um texto maior, porque quisemos mostrar nossas vivências escolares com ou sem EM e o contato com pessoas com deficiência. Essa escolha se deve não ao fato de serem nossas e especiais por isso, mas ser um ponto inicial para impulsionar uma reflexão dos contatos e estruturas que a Escola nos oferece ao longo da vida. Mas e vocês como foram esses contatos? A Escola estava preparada para a inclusão?

 

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