A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) realizou duas consultas públicas em agosto. Uma das propostas é a incorporação do natalizumabe para tratamento da esclerose múltipla remitente-recorrente após primeira falha terapêutica, apresentada pela Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda. A outra, solicitada pela empresa Produtos Roche Químicos e Farmacêuticos S.A, pede a incorporação do ocrelizumabe no Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento de pacientes com esclerose múltipla remitente-recorrente (EMRR) que apresentem intolerância, falha terapêutica ou contraindicação ao natalizumabe.
Para o fundador da AME-CDD, Gustavo San Martin, é preciso envolver o paciente na tomada de decisão sobre um medicamento em um momento mais precoce do que o atual. “Hoje as consultas públicas, que são a principal forma de participação social, já acontecem após uma recomendação preliminar e servem para que a sociedade se posicione, mas já em cima de outra recomendação. Nos últimos anos, a gente viu muito o movimento de ‘panelaço digital’, ou seja, quem tivesse mais assinaturas conseguiria um espaço para poder discutir”, lembra.
A esclerose múltipla é uma doença crônica autoimune que afeta principalmente adultos com idade entre 20 e 50 anos, cuja etiologia ainda não é bem elucidada. A doença pode ser classificada nas formas remitente-recorrente, primariamente progressiva e secundariamente progressiva. Atualmente já estão disponíveis no SUS diversos tratamentos para a forma remitente-recorrente da doença, dentre as quais o natalizumabe.
O natalizumabe é um anticorpo monoclonal humanizado, atualmente recomendado como quarta linha de tratamento da EMRR, após falha terapêutica ao fingolimode. Embora seu mecanismo de ação não seja totalmente definido, postula-se que ele se liga à subunidade α4β1 da integrina, bloqueando suas interações moleculares com seus respectivos alvos. Este bloqueio reduz a atividade inflamatória no Sistema Nervoso Central (SNC), reduzindo a formação ou o aumento das lesões resultantes da doença. O tratamento com natalizumabe requer acompanhamento ativo do profissional de saúde, uma vez que o medicamento pode estar associado ao surgimento de LEMP devido à soroconversão do JVC.
Kátia Guttler Siqueira, de 49 anos, teve diagnóstico de esclerose múltipla em 2005 após um surto agudo. Ela faz uso do natalizumabe para tratamento. “Faço uso uma vez ao mês lá em Porto Alegre. Me adaptei bem, não tenho efeitos colaterais e tive melhora significativa de sintomas. O único problema é realmente o fato de ter que me deslocar pra fazer”, afirma.
A médica Raquel Vassão Araújo, consultora científica da AME e CDD, assistiu a reunião da Conitec sobre o natalizumabe e o Ocrelizumabe, além de ler os pareceres técnicos da comissão. A especialista apontou algumas incongruências nos conteúdos discutidos tanto para esse medicamento quanto para a incorporação do ocrelizumabe. “A gente vê uma incongruência na fala da Conitec que, a princípio, julgou que o ocrelizumabe não deveria ser incorporado como opção ao Natalizumabe, pois considera que o primeiro não tem ganho de eficácia em relação ao segundo, além de desconsiderar a gravidade dos potenciais eventos adversos de Natalizumabe, como a LEMP, desta maneira impedindo que pacientes com alta atividade de Esclerose Múltipla, com mais risco de complicações graves, de ter acesso a outra opção de tratamento mais segura. Por outro lado, ao negar a ida do Natalizumabe para a segunda linha de tratamento, a Conitec usa como justificativa a gravidade de eventos adversos do Natalizumabe, inclusive a LEMP, fazendo disso um empecilho, um impedimento”, explica.
Raquel Vassão Araújo ressalta que a análise para a incorporação do natalizumabe e ocrelizumabe no SUS foram feitas por equipes diferentes. Porém, ela acredita que faz parte do trabalho da Conitec cruzar esses dados para não causar conteúdos antagônicos. “Entendo que é parte da Conitec fazer a análise crítica dessas colocações e aí a gente não vê isso expresso nas decisões. Entendo que nesse momento é muito importante para que sejamos agentes contribuidores, que possamos trazer tanto de maneira técnica, do ponto de vista médico, que lidamos com as doenças, como as pessoas que convivem com esclerose múltipla. A gente sabe que a opinião popular é levada em conta, então, todo nós temos que nos movimentar para fazer parte de uma mudança”, afirma.
A advogada da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla, Sumaya Afif, também assistiu a reunião da Conitec que debateu o uso do natalizumabe. “Em nenhum momento foi avaliado que, se eu tratar melhor o paciente nesse momento, vou ter menos internação, que esse paciente vai custar menos para o sistema, que vai se manter economicamente ativo, vai ter um período maior de vida colaborativa”, ressalta.
A neurologista Milena Pitombeira defende o uso do natalizumabe. “É uma droga muito boa, desde que seja administrada de maneira técnica, estratificando os riscos, inclusive com médicos que dominam o manejo da droga para determinados tipos de pacientes. Ele está no mercado desde 2005 e mantém uma vigilância segura sobre a eficácia. Já temos dados de segurança para usar esse medicamento a longo prazo é uma medicação que funciona muito bem”, enfatiza.
A consultora científica da AME e CDD Raquel Vassão Araújo pondera que, não tendo as opções de tratamento com natalizumabe e ocrelizumabe, os médicos têm menos oportunidade de tratar as pessoas. “Não é porque é remédio novo que tem que entrar, mas é um remédio novo que me dá uma oportunidade de trazer mais segurança para os pacientes. Não é porque é natalizumabe que não pode ser de uma linha terapêutica mais baixa. Inclusive, ele já foi segunda linha por muito tempo e agora não é mais. E a gente perde a oportunidade de ter pacientes em natalizumabe mais precocemente para doenças mais ativas”, conclui.
Maria Patrícia Borges Gollega Vasques, de 50 anos, foi diagnosticada com esclerose múltipla em 1996. Há dois anos, a cada seis meses, ela faz uso do uso do medicamento ocrelizumabe. “O ocrelizumabe está me fazendo muito bem em tudo. Diminuiu a fadiga e não tenho mais infecção de urina. Tomei rebif 22 por 16 anos e, depois, começaram a aparecer mais lesões na ressonância. Com isso, troquei para o fingolimode, que não foi bom pra mim. Tomei durante um ano e só piorei”, afirma.
De acordo com relatório da Conitec, o ocrelizumabe, assim como o natalizumabe, não tem seu mecanismo de ação totalmente explicado. Porém, já se sabe que esse medicamento atua na redução quantitativa dos linfócitos B CD-20+ periféricos, que são células do sistema imune produtoras de anticorpos que atraem outras células de defesa, o que leva à inflamação dos nervos, e assegura a capacidade de reconstituição e desempenho das demais células B. Dessa forma, contribui para a diminuição das reações inflamatórias no Sistema Nervoso Central características da EM.
Para Raquel Vassão Araujo, consultora científica da AME e CDD, o momento é muito importante do ponto de vista do tratamento de esclerose múltipla: “É aquela oportunidade em que nós temos e também as pessoas que convivem com a doença ou os cuidadores, de sermos ouvidos nesse processo”, enfatiza. “Claro que seria muito mais interessante se a gente pudesse participar mais ativamente desde o início, mas é a oportunidade de sermos ouvidos. Eu assisti a reunião da Conitec e li os pareceres técnicos das negativas e tal. A gente vê uma incongruência na fala da Conitec que, a princípio, julgou que o ocrelizumabe não deveria ser incorporado como opção ao Natalizumabe, pois considera que o primeiro não tem ganho de eficácia em relação ao segundo, além de desconsiderar a gravidade dos potenciais eventos adversos de Natalizumabe, como a LEMP, desta maneira impedindo que pacientes com alta atividade de Esclerose Múltipla, com mais risco de complicações graves, de ter acesso a outra opção de tratamento mais segura. Por outro lado, ao negar a ida do Natalizumabe para a segunda linha de tratamento, a Conitec usa como justificativa a gravidade de eventos adversos do Natalizumabe, inclusive a LEMP, fazendo disso um empecilho, um impedimento. Claro que essas análises foram preparadas por equipes diferentes de análise de tecnologia, a gente entende isso. mas eu também entendo que faz parte da Conitec fazer a análise crítica dessas colocações”, avalia.
A neurologista Milena Pitombeira destaca que a escolha terapêutica é individual e precisa levar em conta as peculiaridades de cada paciente que tem esclerose múltipla. Jefferson Becker, presidente do Comitê Brasileiro de Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla e Doenças Neuroimunológicas (BCTRIMS), acrescenta que a EM tem graus distintos de atividade inflamatória e que isso precisa ser levado em conta na hora de escolher o tratamento. “Alguns indivíduos podem ter mais atividades inflamatórias ou menos e isso impacta diretamente no tratamento. Alguns medicamentos têm uma ação antiinflamatória maior e outros menos eficaz. Vai depender de cada organismo”, conclui.