Nesse Dia dos Pais, preparamos uma entrevista super especial com dois queridos papais esclerosados: o Jota, blogueiro do nosso time e o amigo múltiplo Bruno Sanroman! Vem conferir esse bate papo mais que especial
Redação AME: Olá, meninos, tudo bem com vocês? Em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer por toparem a entrevista e falar que a AME inteira é fã de vocês dois <3
Redação AME: Há quanto tempo vocês convivem com a EM?
Bruno: Convivo com o diagnóstico de Esclerose Múltipla a pouco mais de cinco meses, porém sinto os sintomas de dormências nos dedos dos pés e mãos, além de fraquezas musculares e fadiga, desde o primeiro surto não diagnosticado, há pelo menos três anos (2015) e alguns diagnósticos enviesados.
Jota: Bom, eu tenho o diagnóstico desde 2012, mas talvez alguns sintomas já tenham aparecido há mais de 10 anos.
Redação AME: Que tipo de EM vocês têm?
Bruno: Remitente-recorrente. Apresenta ocorrências de surtos e remissão total ou em grande parte das funções corporais.
Jota: Eu tenho o tipo primária progressiva.
Redação AME: Há pouco tempo fizemos uma “live” em nossa página do Facebook falando sobre sexualidade e o principal público que interagiu foi feminino, tivemos apenas 1 homem levantando dúvidas e interagindo. Porque vocês acham que o público masculino se interessa menos por esse tema?
Bruno: Primeiro penso que há menor número de homens em relação às mulheres com Esclerose Múltipla, o que deve ser levado em conta. Depois, Sexualidade está atrelada à construção da identidade, dos afetos, e isso, no nosso caso, uma identidade sexual com a Esclerose. Valores tradicionais do ideário de “ser homem”, o machismo (sempre com letra minúscula, com o perdão da gramática), contribuem para que homens não se sintam a vontade em falar de sua sexualidade, ainda mais quando essa é construída socialmente na figura daquele indivíduo que “não deve falhar”, “ser macho”, ou ainda, “ser viril e nunca brochar”, o famoso “garanhão”; e nem falei na publicidade e apelos midiáticos que padronizam o “modo bom de praticar o sexo”. Isso é prejudicial e envolve questões de autoafirmação e autoestima que prejudicam o autoconhecimento e as relações interpessoais de homens de orientações sexuais diversas. Desconstruir esse ideário é uma forma de libertar a si mesmo e o outro. Mas ainda acredito que a vergonha reprimida e o medo de exposição sejam os fatores que mais pesam.
Jota: Eu acho que não é por falta de interesse ou por possuírem um interesse menor. Vivemos numa cultura machista que aprisiona os homens (e as mulheres) sob um ideal de eficácia. Assim, me parece que por isso tenham mais dificuldades de falar sobre suas dificuldades e pelas dificuldades sexuais decorrentes da EM. Antes de resolvermos os problemas médicos relacionados à vida sexual, cada um deve se questionar a respeito das coisas externas (medos, preconceitos, ideias etc.) que levamos para cama na hora da intimidade.
Redação AME: Como vocês lidam com a sexualidade de vocês, convivendo com EM?
Bruno: Quando se fala de sexualidade se fala de fatores como cultura e orientação de seus valores, sejam herdados ou construídos, e de questões biológicas. Procuro lidar com minha sexualidade na própria interação em direção a minha companheira, ao seu desejo em relação ao meu, com clareza, conversando sobre intimidades, prazeres, gostos, curiosidades e possíveis inconvenientes. Enfim, a liberdade é o que eu mais prezo em minha sexualidade, e só me entendo livre quando a minha liberdade encontra a da minha parceira e as condições físicas necessárias. Parece simples falando assim, mas nem sempre é. Nesse momento é importante a porta do diálogo e do entendimento estar aberta e receptiva, distante de julgamentos severos e preconceituosos. Entender que o prazer está além de um ato, está mesmo nos entreatos de carinho, admiração, diversão e intimidade com a outra pessoa, ou como diz a música do Gonzaguinha “eu preciso é ter consciência/do que eu represento nesse exato momento/no exato instante na cama, na lama, na grama/em que eu tenho uma vida inteira nas mãos”.
Jota: Acredito que hoje eu lido muito bem. Mas para chegar nesse ponto precisei me libertar desse ideal de eficácia e ressignificar o que era sexo para mim. Falei sobre isso em um Qualidade Vivida e escrevi sobre o assunto em um post aqui na AME.
Redação AME: Falando nisso, os dois são casados, como é a relação com as companheiras de vocês em relação ao sexo? Tem alguma diferença na relação com o sexo antes do diagnóstico e depois do diagnóstico?
Bruno: Mara (minha companheira) e eu nos conhecemos há dez anos e dividimos nossas rotinas a pelo menos sete anos. Nesse tempo tivemos a oportunidade de criar intimidades, ressignificar nossos desejos, nos apaixonar um pelo outro de formas diferentes, e de abandonar vícios e épocas de tédio em que toda relação em que um busca o outro às vezes cai. Eu já sentia alguns sintomas da Esclerose nesses três anos passados, e isso influenciava principalmente na questão da fadiga. É interessante inclusive porque eu associava ao estresse do trabalho, às demandas da filha e da casa, não à Esclerose. De fato me sentia exausto e acho que muitas pessoas que não têm EM vivem isso. Conversando a gente se entende, e se querendo a gente cria prazeres tão intensos apenas com os gestos e toques mais sutis da experiência sexual, justamente porque o sexual vem depois da relação quando falamos da “relação sexual”. Plenitude sexual é quando a matemática cartesiana não faz sentido, um mais um é um prazer múltiplo compartilhado por dois, ou mais a quem preferir, sem pudores! É isso, assim fica claro, se os sintomas são múltiplos que os prazeres também sejam muitos múltiplos e comuns.
Jota: a minha relação com a minha esposa é a melhor possível. Tenho muito a agradecê-la. Felizmente sou casado com a Bruna, uma pessoa com esclerose, que entendeu todos os meus problemas e me mostrou que meus problemas muitas vezes sequer eram problemas. Ela foi um Porto Seguro de estabilidade enquanto enfrentava minhas próprias mudanças. Ela e meu pezinho teórico no feminismo e nos estudos sobre a deficiência certamente me ajudaram a relativizar minha visão do que era sexo e do que era ser pai. Com relação ao diagnóstico não houve diferença, pois ela já me conheceu com EM.
Redação AME: Vocês dois já são pais, contem um pouco para a gente como a paternidade aconteceu na vida de vocês? Foi uma decisão planejada?
Bruno: Isso é engraçado, hoje é. Mas nossa filha Clara, que agora tem seis anos, não foi planejada, mas sem que eu soubesse já estava planejando minha vida toda. Como pessoa que não tinha o diagnóstico de Esclerose, tive os dilemas que muitos jovens de 24 anos experimentam – no meu caso recém formado e egresso no mestrado em Filosofia – “ter ou não ter, eis a nossa decisão!” (sei que os shakespearianos vão entender…), onde morar? Casar? O que ela (a mãe da Clara) pensa e sente disso? Vamos juntos? E todas as coisas foram se ajeitando, não sem muito esforço, dedicação, frustrações, desconstruções e invenções: as eternas adaptações! Sabendo do diagnóstico alguns cuidados se intensificaram, e a responsabilidade sobre meu tratamento aumentou em sentidos e sonhos, independente do que possa acontecer. Tenho muito ainda que ensinar e aprender com minha filha. Na verdade, o diagnóstico nos aproximou mais, como resgatar minha memória infantil de quando aprendi a escrever, e de agora tentando escrever com a mão esquerda (sou destro) e ela do meu lado acertando suas primeiras palavras e rindo dos meus garranchos, isso nos aproxima. Penso que ser pai é isso, orientar, se entender com a criança que já foi você, apresentar valores que ela inclusive terá que questionar e aceitar ou não… E a paternidade tem me ensinado a buscar alternativas para desviar do ideal do pai da propaganda de margarina. Ser pai independe de minhas limitações, mas me dá oportunidade de procurar uma resposta para a pergunta “E aí, vai ensinar o quê para ela com suas limitações?”.
Jota: A vinda do Francisco foi cuidadosamente planejada. Brincamos – o que na verdade é real, os outros é que riem achando que estamos brincando – que decidimos engravidar quando começamos a ter vontade de “roubar” crianças no shopping. Então, para evitar possíveis delitos, resolvemos fazer uma pra gente. Felizmente temos uma grande rede que nos auxilia; pessoas as quais somos muito gratos. Sabemos das dificuldades de se criar um filho, ainda maiores com EM. Pra mim ainda é um problema a mais saber que preciso ser cuidado e que alguém precisa ainda cuidar do Francisco.
Redação AME: Vocês já tiveram algum receio em relação à EM e a paternidade?
Bruno: Sim! Pensando nessa pergunta, lembro das duas primeiras perguntas que fiz à neurologista: É fatal? Não, você ainda tem muito que viver. É hereditária? As chances aumentam em uma pequena porcentagem, mas não definem que sua filha vá ter e caso ela tenha, teremos muitos outros tratamentos! Essa clareza da minha médica foi fundamental, me acalmou. Eu sinto as vibrações das incertezas daquilo que pode vir a ser com a minha experiência com a Esclerose e também com a paternidade quando penso nas minhas rotinas como pai na hora de dar banho, o almoço, a roupa… Mas aí lembro que um pai não é só isso, mas o carinho e o afeto, a compreensão, o entendimento dos limites, enfim, a criação de memórias afetivas e de um ser pensante, sensível e ativo no mundo.
Jota: Medo, eu tenho. Mas, como dizemos aqui em casa, então vai com medo mesmo. Receio piorar e não conseguir acompanhar o crescimento do Francisco ou não ter forças para brincar com ele.
Redação AME: Como é a rotina com os filhos? O que mudou na vida de vocês?
Bruno: A Clara passa o dia na escola junto com minha companheira, que é professora na escola onde ela estuda. No período da noite jantamos juntos os três e, depois do banho, esses meses de remissão do surto que tive em fevereiro tenho feito a lição de casa com ela, coisa que não era tão frequente antes, ou que era muito mais penoso para mim, e que eu tenho adorado, se tornou parte da minha terapia construir os personagens das atividades com materiais recicláveis. E eu passei a concordar mais ainda com o Oscar Wilde quando ele diz “adoro as coisas simples, elas são o último refúgio de um espírito complexo”. Clara é uma criança enérgica, o que torna as tarefas mais desafiadoras, e até na hora de dormir está agitada. Isso exige a adoção de estratégias que muitas vezes não funcionam, mas como ela é muito parceira, quando converso com ela, às vezes pedindo 10 vezes, ela entende e se acalma. Pelo menos um pouco. O que tem mudado com o meu diagnóstico é o tempo de fazer as coisas em casa. É uma mudança lenta, mas tem surtido bom efeito. Além disso, por ter mudado minha alimentação, não só a Clara como a Mara têm se alimentado melhor, e isso também influencia na educação dela.
Jota: A rotina de pai é acompanhada de compromissos com exercícios da fisioterapia e as pesquisas da tese. Não tem muito como fugir dessas obrigações, mas é difícil. Às vezes, dá vontade de largar tudo para brincar com ele. Por isso aproveito para fazer algo quando o Francisco está dormindo ou tem alguém para cuidar dele. Ter um filho certamente muda muita coisa, mas é fantástico quando você percebe que as coisas que você faz ressoam e tem interesses para além de si próprio; seu conforto é secundário. Isso tem muito a ver com a minha vivência com a esclerose, quando eu estou fazendo exercício, por exemplo, sinto que não é só por mim que estou fazendo.
Redação AME: Você, Bruno, tem uma filha já de 6 anos, você fala para ela sobre a EM? Já tiveram alguma conversa sobre a doença?
Bruno: Conversamos sempre sobre a Esclerose Múltipla, inclusive ela ri muito quando se ouve falando errado o nome do “machucado do papai”. Falo com ela sobre o corpo e que é a nossa cabeça, o “cérvero” (cérebro) que comanda todos os nossos movimentos, pensamentos e imaginações. Ainda ficou um tanto abstrato a ideia do neurônio e o fio desencapado, mas eu contei que sou um “bicho preguiça hiperativo” para falar da fadiga e que não posso colocá-la nos ombros porque doem e ela está pesada e… afinal, eu não sou um camelo peludo. Mas acho que o maior entendimento é em relação à medicação que é injetável e diária. No primeiro dia ela ficou assustada, mas depois a curiosidade foi maior e apertar o botão da injeção a fez entender a função de proteção, amenizar o medo pelas injeções. Pelo menos é o que tudo indica.
Redação AME: E você, Jota? Pensa em contar pro Chico? Como você pensa em falar sobre a EM com ele, quando ele crescer?
Jota: Na verdade, contar nem é uma opção. Ele terá os dois pais com esclerose, seu padrinho, um monte de amigos dos pais, nos vera envolvidos com a causa… Nesse caso, a doença é a fruta que cai perto da árvore… É identidade, não é um “outro” qualquer e estranho, mas faz parte experiência familiar.
Redação AME: Se vocês pudessem dar alguma dica em relação à sexualidade, relacionamentos, frustrações, medos, primeiro encontro, para homens que convivem com EM, o que diriam?
Bruno: Desconstruam-se! Dói e nunca acaba, e ainda por cima, é difícil. (Juro que eu quebro a cara, mas estou quebrando melhor a cada dia). Mas justamente por isso tudo acaba se tornando interessante e caracteriza uma parte da experiência humana incrível: sentir prazer e retribuir prazer, amar e ser amado, desejar e ser desejado. Pode ser casual, e não tem problema. De sexos diferentes ou iguais cada pessoa é uma experiência, e cada experiência é marcada por suas novidades, sincronicidades e intensidades. Mas nunca perca de vista que a positividade que você coloca nos seus afetos tem que ser maior que os preconceitos e os medos que você tem. E pra fechar, há um texto do escritor argentino Julio Cortázar que é bem curto chamado Amor 77: “E depois de fazer tudo que fazem, se levantam, se banham, se entalcam, se perfumam, se penteiam, se vestem, e assim progressivamente vão voltando a ser o que não são”. Minha dica aos meus colegas é, reflitam nesse texto lendo-o de trás pra frente e encontrem a sexualidade de vocês, desnudem-se e compartilhem.
Jota: Para mim especialmente algo que ajudou muito foi a exposição pública dos meus desconfortos e medos privados. Falar abertamente sobre eles, os deixou pequenos. Nem sei se isso pode ser considerado um conselho, pois é difícil. É muito difícil falar sobre aquilo que você quer esconder intimamente, no mais profundo segredo, a sete chaves. Não tenho como esconder a minha esclerose e as minhas deficiências, mas acredito que o melhor é a exposição, não tratando uma enfermidade como um problema que deveria ser escondido, mas apenas como um elemento a mais a compor o prato.
Redação AME: E sobre paternidade? Tem alguma dica?
Bruno: Seja adotado, biológico, momentâneo, aparentado, ser pai na minha experiência é ter a oportunidade de negar seu egoísmo, ou melhor, ampliar seu egoísmo para além de si mesmo. O que no fundo é outra forma de definir amor.
Jota: Sobre a paternidade, acho que a palavra mais importante é PRESENÇA. Sei que necessito de muitos cuidados, mas tento fazer o que posso e ser o mais presente possível. A Bruna nunca me exigiu que fizesse algo para além das minhas capacidades. Posso cantar musiquinhas; ficar tomando conta dele (nem que for para gritar por ajuda); ver desenho etc.; às vezes, fazendo coisas que podem também serem exercícios de terapia ocupacional, de forma secundária úteis a mim, como pintar livrinhos ou fazer bolinhas com massa de modelar. Cada pai é convidado a refletir sobre suas potencialidades e capacidades.
Redação AME: Meninos, foi incrível! Obrigada por compartilhar de maneira tão sensível a caminhada de vocês, com a gente! Um baita presente para tod@s nós <3 um beijo, da nossa equipe toda!