Tenho pensado muito nesse tema ultimamente: forma e conteúdo. Confesso que não diretamente por causa da EM, mas pelas turbulências políticas que enfrentamos em 2016 e não dão sinais de recuarem em 2017. Apesar disso, acredito que vivemos um momento de reconstrução.
Durante muito tempo se justificou a violência por causa de uma forma, que aplicada a uma etnia, partido ou grupo social justificou as grandes cicatrizes da humanidade desde a antiguidade (guerras, inquisição, escravidão, nazismo etc.). Desde a divisão entre helenos e bárbaros se colocou uma oposição e uma hierarquia, em que socialmente um lado se achava e se vendia como melhor que o outro. Apesar disso, quando a convivência era possível se mantinha a paz, quando não, se defendia a destruição total do Outro, visto como ameaça.
Na outra ponta, nas últimas décadas houve uma necessária ênfase do conteúdo. A linguagem e a experiência passaram a ser valorizadas em relação a uma ideia imaginada ou preconcebida. O que se dizia sobre aquela forma não era suficiente. Ao invés de autoridades e discursos supostamente neutros, procurou-se abrir o microfone para que as próprias pessoas falassem sobre suas vidas, aquilo que experimentavam e sentiam cotidianamente na pele. O que desembocou nos tais “politicamente corretos”, vistos como “chatos” pelo primeiro grupo por questionar e abalar suas certezas anteriores.
Mas Jota, o que esse blá, blá, blá todo tem a ver com o fato de eu, um parente ou amigo ter Esclerose Múltipla? Bem, se a relação ainda não ficou clara, vamos lá. Durante muito tempo, se procurou afastar ou separar a pessoa doente do convívio social. Hospitais e instituições religiosas eram destinadas principalmente àqueles em estado terminal. A cura, como se acreditava, dependia mais da vontade divina do que conhecimento do médico ou desenvolvimento da medicina.
Mesmo com os avanços da ciência e da área médica, os campos religiosos, científicos e políticos continuaram a construir discursos que colocaram a doença como símbolo de condenação, culpa e contágio; o que procurava justificar a violência e a distinção. No esporte, no trabalho, na sociedade a doença foi vista como um mal e, durante muito tempo, se procurou afastar tudo o que se relacionava à enfermidade e à morte do campo de vista. Mas o que acontece quando temos um filho, um empregado, um amigo com EM, outra doença ou que necessita de condição especial? O que fazer quando nós mesmos temos um diagnóstico? O que fazer com todos aqueles pensamentos sociais que ruminamos de forma acrítica durante décadas, quando se precisa conviver com uma doença crônica ou que exige cuidados constantes?
Incapazes de aprender e encontrar alívio com os discursos comuns, abstratos e meramente teóricos (que às vezes podem ser insensíveis) é necessário se voltar à experiência, ao conteúdo, ao que as pessoas que convivem todos os dias com a doença têm a dizer. Aí está a importância dos blogs, vlogs e amizades virtuais. Relações de compartilhamento geradas no diagnóstico. Mesmo com todas as diferenças individuais, às vezes precisamos de identidades coletivas, uma forma.
No entanto, há certas identidades que ultrapassam o diagnóstico. Com ou sem EM, você continua sendo homem, mulher, paulistano, porto alegrense, mineiro, engenheiro, advogado, dentista, aluno, amigo, filho, primo, namorado, esposa etc. Seu sexo, cidade, profissão, parentesco contam mais como referência. A isso volto à forma e o conteúdo.
No último post, levantei a ideia de que a forma precisa do conteúdo para se movimentar e o conteúdo, apesar do movimento, precisa da forma para se manter estável. Naquele texto procurei tratar sobre uma espécie de relacionamento (o entre duas pessoas e mais especificamente o meu e da Bruna), agora estou pensando em uma perspectiva mais ampla. O diagnóstico é um momento de ruptura e de mudanças, sejam temporárias ou permanentes, e cabe aos elementos dessa relação pensar sobre o que realmente importa e adaptar o novo conteúdo à forma antiga. Enfim, é necessário movimentar-se para se manter estável.