O poeta Manoel de Barros dizia que para entender a intimidade do mundo era preciso desinventá-lo. Isso porque antes do alfabeto, das casas, das pessoas, o mundo foi feito de água, luz, árvores e depois lagartixas. Dar importância àquilo que achamos desimportante, talvez seja o primeiro passo para conhecer nossa intimidade e ela, na maioria das vezes, esconde-se em nosso avesso, onde nem tudo é perfeito. A descoberta é que dentro dessa possível imperfeição que somos há espaços vazios, abertos, feito janelas em dia de sol à espera do encontro mais importante de nossas vidas: aquele com nós mesmos.
Foi isso que aconteceu com a Natália. Um dia, ela decidiu riscar sem medo de ferir o papel. Riscar sem medo de não ser aceita. Riscar e descobrir que, dentro da sua imperfeição, existia uma estética que, justamente por não se adequar aos padrões e às necessidades do que é perfeito, aceitou-se plena e imperfeita. Natália Bianchi, artista visual, vem conversar comigo numa manhã cinza e chuvosa. Logo me diz que não vê a chuva, apenas a ouve. Natália tem uma doença rara que a faz ver apenas em preto e branco, a acromatopsia, além de ter entre 15 ou 20% de visão. Conta que as pessoas perguntam se ela não sente falta de ver o mundo de modo completo. Nessas horas, sorri e devolve a questão: “o que é ver o mundo completo e perfeito?”
Quando era criança, Natália não tinha consciência de que enxergava menos. Via o mundo com suas texturas e volumes. Muito depois, descobriu que não enxergava as formas e as cores. Então foi rotulada como sendo deficiente. “E ter uma deficiência é estar fora do padrão, é ser inútil”, diz ela, enquanto abre uma pasta com suas obras. São riscos, traços em aquarela e nanquim, que trazem para o papel o modo como vê. Suas criações são dotadas de distorções, movimentos e estranhamentos. Desacomodam o olhar acostumado a ver o mundo com linhas e contornos definidos. As bordas nos contém. “O perfeito encerra um traço que modela a imagem, eu trabalho com o caos e o acaso. Minha obra é mais afetada e afeta mais. Não sei se vejo o mundo diferente, sei que o vejo do meu jeito”. Natália trabalha com a estética da imperfeição e suas obras são uma experiência visual imperfeita. No início da carreira, criava quadros com elementos figurativos, que a maioria das pessoas gostam, porque são conhecidos, mas o problema é que eram desconhecidos para ela. Debatia-se com a questão: “por que dar forma àquilo que não tem forma para mim?”. Seu segundo desafio na arte foram as cores. “Para uma pessoa que no máximo alcança os tons de cinza, como entender do que se trata a teoria das cores?”, brinca. Para não se apegar às regras, costuma riscar os nomes das cores nos tubos de tinta. Depois espalha pela paleta e pinta, livremente. “As cores nasceram sem nome para mim; por que agora que tenho consciência da minha doença eu iria me importar com isso?”. Da sua imaginação e liberdade brotam vermelhos, amarelos, azuis. Afinal, a visão é também um ato poético do olhar.
Criar pelo avesso
Foi quebrando regras, abandonando moldes e preferindo a desproporção que Ana Júlia Poletto descobriu-se uma ceramista do imperfeito e do “desútil”, termo muito presente na obra do poeta Manoel de Barros. Amassar a argila, não usar o torno e passar para a peça suas emoções e sentimentos a motivam a criar pelo avesso. Ana Júlia faz peças em cerâmica imperfeitas, que lembram as lunações do poeta Herberto Helder, as desutilidades de Manoel de Barros, os desassossegos de Fernando Pessoa, a coragem de Adélia Prado. “É preciso renascer e reconstruir para deixar o avesso à mostra”, diz Ana. Para ela, o barro é visceral. Ao tocar nele, ela acredita que toca na vida, em si mesma, nos seus medos – e assim aprende a conhecê-los. Suas peças são irregulares, suas formas guardam silêncios e ressonâncias de mundos internos e distantes, suas texturas nos convidam ao toque. “Foi o barro que me ensinou como ele queria ser modelado e continua me ensinando que para aceitar o inacabado, o avesso, o imperfeito, é preciso motivação e intimidade. Trabalhar com o barro é saber e aceitar que o processo é mais lento, que é preciso criar um vínculo com a matéria-prima e estar presente no momento da criação com mente e essência, sem se preocupar se ficará bonito no final”, acredita a artista, que para aceitar-se imperfeita e inacabada teve, primeiramente, que seguir em direção a si mesma.
Para a psicoterapeuta Gilla Bastos, toda pessoa para viver em sociedade, pertencer a grupos e estar dentro dos padrões sociais aceitos acaba por esconder seu lado imperfeito. “Só que ele é a nossa parte mais humana”, afirma. Para ela, aceitar-se incompleto é também deixar os nossos vazios existirem, mas envoltos de afetos, de compreensão e de amor. “É na imperfeição que encontramos a nossa subjetividade. E é nas brechas do imperfeito que há espaço para a existência e o convívio com o outro”.
Aceitar a incompletude, afinal, faz de nós o que somos. Viver é confuso e dá medo dos quartos fechados dentro de nós. O escuro pode ser o nosso avesso. E, diferentemente do que passamos uma vida toda ouvindo, o avesso – ao contrário do lado perfeito e polido – guarda sua plenitude justamente por ser assimétrico e inacabado. A não linearidade abre brechas em que o encontro se torna possível, onde o outro pode se fazer presente. O imperfeito nos ensina a beleza da simplicidade e é ela que nos empurra para a transformação e o crescimento. Parafraseando Manoel de Barros, são os nossos olhos que renovam o mundo.
ADRIANA ANTUNES é jornalista e agradece o universo por conhecer pessoas tão incríveis que a ajudam a aceitar-se como é, imperfeita e incompleta.
Texto na íntegra – Revista Vida Simples