Durante as paralimpíadas os repórteres pegavam os atletas que tinham acabado de participar de alguma prova e, além da entrevista, mostravam um VT com depoimentos dos familiares. A câmera fechava e os depoimentos eram acompanhados por todos os telespectadores. Ao retornar à entrevista, o atleta estava visivelmente emocionado, com a voz embargada, quando não aos prantos.
Esse foi um padrão que aconteceu durante quase toda a competição. A constante repetição dessa atitude me fez pensar sobre ela; não era um caso unicamente individual. Além da felicidade de poder competir na presença dos familiares (coisa que, acredito, passaram igualmente todos os nossos atletas olímpicos) se colocava a questão: o que representava a família para um atleta paralímpico?
Estarem ali em um evento esportivo internacional e de alto nível era, sem dúvida, um esforço familiar. Não cabiam explicações individuais; do cara que foi lá e sozinho venceu. Não, não era o caso. As deformidades, as deficiências, as doenças eram estigmas que faziam com que a sociedade não esperasse grandes coisas daqueles indivíduos, daquelas vidas. A degeneração que acompanha algumas enfermidades parecia ir contra a natural progressão esperada. Certamente coube ao amor e ao comprometimento familiar fazer daquelas pessoas o que são; tanto em relação ao empoderamento, a afirmação da autoestima, o acompanhamento em tratamentos, em médicos, nos esportes, nas competições etc. Imagino que um filme deve ter passado na cabeça daqueles atletas em cada depoimento.
Ali vemos o resultado; a foto da chegada, as medalhas, o rendimento. Só podemos reconstruir o motivo do choro por uma hipótese, uma história imaginada e reconstruída por nós para aqueles sujeitos. No entanto, toda semana na AACD eu vejo o início desse processo e a importância da presença da família. Uma doença ou uma deficiência quebra completamente a lógica individualista, do sujeito que faz a si mesmo. É preciso reconhecer um esforço coletivo e ver a dependência como algo natural e não vergonhoso.
Toda semana vejo mães que acompanham filhos em seus tratamentos, deixando suas vidas em suspensão para que seus filhos tenham melhores oportunidades. Às vezes, viajam horas com sua prole, em carros de prefeitura, vindos de cidades do interior, para tratamentos que duram 40 minutos. Vejo mulheres que pegam seus filhos adolescentes no colo para transferi-los da cadeira de rodas para o transporte. Vejo irmãos acompanhando pessoas com deficiência, pouco importando a falta de uma perna ou a dificuldade de compreensão na fala. Vejo pais limpando voluntariamente bocas de filhos que após sofrerem um acidente grave sequer conseguem pedir o favor. Vejo mães adotivas que escolhem cuidar de vidas que os pais biológicos abandonaram. Vejo o sorriso no rosto de crianças correndo com suas órteses ou apostando corrida em suas cadeiras de rodas pelos corredores. Vejo o início e não apenas a foto de chegada.
Indo para outro âmbito… Atualmente, há uma discussão sobre a necessidade de cotas para pessoas com deficiência nos programas de pós-graduação das universidades públicas. Alguns dizem: isso é necessário? Visto que a pessoa já se formou em uma faculdade e já é apta a exercer uma carreira. É até engraçado esse tipo de argumento, por todo o seu desconhecimento. Primeiro porque pressupõe que ter uma carreira é o suficiente para exercê-la. Os textos que escrevi sobre trabalho mostram que a coisa não é tão simples. Segundo, acredita que a sociedade já fez o suficiente e não precisa oferecer qualquer facilidade e que agora só depende do indivíduo. No entanto, será que esses pressupostos podem ser considerados como verdadeiros?
Duas perguntas devem ser feitas. A primeira é: e se a pessoa com deficiência quiser continuar a estudar e a se qualificar? Deve competir com outros nas mesmas condições, mesmo com condições que lhe dificultam? Hoje, faço doutorado. Não entrei por cotas, não tinha na minha época. Mas preciso de certas adaptações e auxílios para conseguir realizar o trabalho. Já precisei de algumas ajudas e maleabilidades no mestrado, quando recebi o diagnóstico de EM. Regras muito rígidas e impessoais podiam ser prejudiciais.
A segunda é: a sociedade já fez mesmo o suficiente ao oferecer um curso no ensino superior? Após essa digressão toda, que caberia melhor nos textos sobre EM e educação volto ao tema desse post. Indiscutivelmente, oferecer um curso não é o mesmo que fornecer condições de realizá-lo. No que tange pessoas com deficiência e educação, quase sempre uma história do desenvolvimento e sucesso está ligada a um esforço coletivo: a família está por trás. É necessário vencer mutas batalhas até o diploma e nisso é o empenho e a disponibilidade de algum membro da família que nos possibilita lutar essa luta: seja para transcrever aulas, acompanhar em eventos, digitar anotações etc. Eu mesmo não sei como poderia fazer o doutorado sem esse auxílio.
Assim, o engajamento é coletivo e a construção da identidade da pessoa também. Podemos até gritarmos aos quatro ventos sobre a autonomia e liberdades dos sujeitos, mas uma doença abala essas certezas. Quis trazer aqui 3 situações em que o apoio e comprometimento familiar foi, não apenas importante, como fundamental para o desenvolvimento do indivíduo. Assim, cabe ao paciente se despir da capa de quem fazia tudo e de reconhecer que precisa de ajuda; e ao parente o reconhecimento de que a pessoa amada precisa dele. A pergunta que fica é: o quanto, ambos os lados, estão disponíveis a aceitar mudanças e adaptações? O quanto estão podem dar de suas vidas para o outro? No fundo, é uma escolha!
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Todos os blogueiros esclerosados que escrevem aqui têm histórias incríveis envolvendo suas famílias em seus blogs pessoais ou aqui na AME, de aceitação ou não. Então, se quiserem saber mais sobre o tema vale à pena dar uma fuçada. No entanto, gostaria de sugerir especialmente o blog da Geisa, nossa mãe de esclerosado, para uma outra perspectiva que não da pessoa com EM.
Além disso, coincidentemente, o tema do “Qualidade Vivida” desse mês é família. É interessante também dar uma olhada no vídeo.