Bruna e Jota se conheceram na internet por causa do diagnóstico de esclerose múltipla – uma doença autoimune na qual o organismo ataca a si mesmo –, mas isso não é, nem de longe, a única coisa que compartilham. Os dois têm o mesmo gosto quando o assunto é música e literatura. Seguem carreiras acadêmicas – ela faz doutorado em Educação, ele, em História. E, agora, comemoram uma das fases mais felizes de suas vidas, esperando com ansiedade pelo dia em que vão se transformar em três.
A decisão de engravidar surgiu pouco depois que Jaime dos Santos Jr. (o Jota), 33 anos, mudou-se de São Paulo para morar com Bruna Rocha Silveira, 30, em Porto Alegre. O casal já sabia dos cuidados necessários para levar uma gravidez com a doença e, antes de qualquer providência, consultou a neurologista que os acompanha. Bruna tinha condições de planejar uma gestação, pois estava há aproximadamente um ano sem os sintomas agudos da doença.
Ela lembra perfeitamente da última vez em que precisou fazer pulsoterapia – tratamento para conter os surtos:
– Faço a medicação no 11º andar do hospital e, de lá, dá para ver a maternidade, no 10º. Ficava olhando para baixo e, vendo os bebês, pensava: da próxima vez que eu voltar, vai ser para aquele andar.
Com monitoramento médico, Bruna interrompeu a medicação em novembro do ano passado, alguns meses antes de começarem a tentar, e engravidou em março. Para compartilhar a experiência e tirar dúvidas, Bruna e Jota publicam semanalmente um vídeo no canal Esclerose Múltipla e Eu, no YouTube. Nesse espaço, respondem perguntas que muitas vezes os incomodam, como se eles podem ter filhos "apesar da esclerose múltipla" e o que vão fazer se a criança também tiver a doença.
– E daí se tiver esclerose múltipla que nem a gente? Por acaso não estamos felizes, fazendo planos de vida? Se o nosso filho tiver, já vai nascer em uma família que sabe lidar muito bem com ela – sentencia Bruna.
Jota utiliza cadeiras de rodas em razão da doença. No sofá da sala, ele coloca e recoloca cadarços em um sapatinho de bebê para melhorar a motricidade fina. Não esconde o medo: será que vai poder levar o seu filho à pracinha? Vai conseguir pegá-lo no colo? Como de costume, é Bruna quem o tranquiliza:
– Tu não vais ser aquele pai padrão, o estereótipo de pai, mas tu vais ser o pai que tu podes ser, e eu vou ser a mãe que posso ser. Como qualquer pai e mãe.
O bebê será o primeiro do casal, o primeiro neto das mães deles e o primeiro bisneto das avós. Como o primeiro em tantos níveis, já está sendo mimado antes mesmo de nascer. Bruna destaca que tem uma boa rede de ajuda na família – como toda mãe deveria ter, salienta –, e que vai lembrar de todo mundo que se coloca de prontidão para ajudar.
– Eu digo: vou anotar teu nome. Quando eu quiser dormir e ele estiver chorando, vou te ligar – diverte-se.
Com 14 semanas de gestação, o casal ainda não sabe o sexo do bebê, mas duas gavetas do guarda-roupas já estão lotadas de presentes para o pequeno. No quarto dos dois, o berço está montado – foi comprado em um brechó e instalado somente para ver se estava inteiro. Babões, os dois não tiveram coragem de desmontar. O apartamento ganha pouco a pouco adereços infantis, lembrando Bruna e Jota que faltam menos de seis meses para o amor se multiplicar.
Quem tem a doença pode engravidar?
A neurologista Maria Cecília Aragon de Vecino, coordenadora do Centro de Esclerose Múltipla do Hospital Moinhos de Vento, afirma que a mulher com esclerose múltipla pode engravidar, mas preferencialmente quando a doença estiver bem controlada. Em razão da suspensão da medicação, recomenda-se que esteja há pelo menos um ano sem surtos e sem lesões novas diagnosticadas na ressonância.
Com relação a futuros pais com esclerose, não costuma haver problemas – mas cada caso deve ser avaliado. Exceto em famílias com amplo histórico do problema, o fato de os pais terem a doença não aumenta muito o risco de o bebê ter também, de acordo com a especialista.
Segundo a neurologista Elizabeth Regina Comini Frota, coordenadora do Departamento Científico de Neuroimunologia da Academia Brasileira de Neurologia, é indicado interromper o tratamento antes de engravidar, e também durante a gestação e a amamentação – exceto se a mulher apresentar uma piora comprovada. Ela destaca que é necessário cuidado no período pós-parto, pois pode ocorrer agravamento da doença:
– Durante a gravidez, o sistema imunológico tem de conviver com o feto, que é metade estranho ao organismo da mãe. Por isso, como a natureza é sábia, há um adormecimento do sistema imunológico, ele fica controlado. Existem algumas doenças que podem piorar na gestação, mas não a esclerose que, em geral, fica em remissão nesse período.
Antes de mais nada, o casal deve procurar um neurologista capacitado e um obstetra que tenha noções de esclerose múltipla, de acordo com Maria Cecília.
Diagnóstico ainda é um dos principais desafios
Imagine um exército criado para proteger as terras do seu rei. Certo dia, a tropa entende que está sendo atacada, não identifica o suposto inimigo e acaba bombardeando o próprio castelo.
É isso que ocorre no sistema nervoso central de quem tem esclerose múltipla, doença autoimune que atinge cerca de 35 mil pessoas no Brasil. Na metáfora utilizada pela neurologista Maria Cecília Aragon de Vecino, o exército trapalhão é o sistema imunológico do paciente, que ataca o sistema nervoso central, gerando lesões cerebrais e medulares.
O diagnóstico nem sempre é fácil, porque os sintomas da esclerose múltipla são facilmente confundidos com os de outras doenças (ou de doença nenhuma) – como visão embaçada ou dupla, fadiga, tontura, perda de força ou de equilíbrio e até alteração de sensibilidade. O problema acomete principalmente jovens adultos e pode gerar comprometimento do movimento dos membros, da visão, transtornos cognitivos, entre outros problemas.
De acordo com a neurologista Elizabeth Regina Comini Frota, que participou da 1ª Conferência de Esclerose Múltipla do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia do Hospital Moinhos de Vento na semana passada, a doença não tem cura. O tratamento visa controlar inflamações do sistema nervoso, mas ainda não há medicamentos que consertem as lesões.
– Todos os medicamentos que usamos atuam de alguma forma no sistema imune, e é essencial que os neurologistas que trabalham com esclerose múltipla saibam com clareza o mecanismo de ação dos medicamentos – diz Elizabeth.
A neurologista destaca que uma das mais importantes descobertas relacionada à doença foi a identificação de uma mutação genética que parece estar diretamente associada à esclerose múltipla, em um gene chamado PLG, responsável por produzir proteínas ligadas à inflamação no sistema nervoso. Em pesquisa realizada pela Universidade British Columbia, no Canadá, o gene aparecia em cinco pessoas da mesma família que apresentavam a doença. Ao estender essa pesquisa para mais de 14 mil pacientes, encontrou-se a mutação desse gene em uma grande porcentagem de pessoas.
– Não se pode falar que essa modificação seja a causa da doença, mas é uma associação e pode ser uma das causas. Vai resultar em novos estudos, novas perspectivas, e pode ser que mude o tratamento da doença daqui a alguns anos – avalia Elizabeth.
A doença surge em pessoas que têm genética com determinadas dificuldades em relação ao sistema imunológico, e em um momento da vida pode haver fator externo que desencadeie o processo – várias hipóteses de gatilho vêm sendo estudadas. O professor de neurologia da UFCSPA Sérgio Haussen, chefe do serviço de neurologia da Santa Casa de Porto Alegre, lembra que é comum pessoas conviverem a vida inteira com a doença sem ter um diagnóstico. Mas identifica bons avanços nesse sentido:
– Há mais divulgação por parte da medicina e métodos de diagnóstico como a ressonância magnética: quadros leves que antes ficavam sem diagnóstico, hoje são diagnosticados.
Maria Cecília destaca ainda a importância de manter a qualidade de vida, mesmo com o diagnóstico da doença, focando no bem-estar físico – fisioterapia e exercícios físicos são indicados –, e também mental, espiritual e social.
http://zh.clicrbs.com.br | Jéssica Rebeca Weber – 19/06/2016.