“A televisão brasileira, mais do que instrumento de divulgação de informação, é um meio de legitimação de temas/assuntos problematizados na sociedade. A teledramaturgia sinaliza as mudanças que ocorrem na sociedade, criando tramas de forma que o espectador consiga se reconhecer de alguma forma […] A visibilidade midiática pode ser entendida como espaço de negociação de sentidos da sociedade, e as instituições midiáticas ligam os indivíduos desta sociedade, lançando temas a serem discutidos, que poderão produzir sentidos, sentimentos e mudanças sociais” (Bruna Rocha, 2012 – acesse aqui).
As palavras que abrem esse post é um trecho da minha dissertação de mestrado. Não, não vim aqui fazer propaganda dos meus trabalhos acadêmicos, mas essa semana é impossível não falar de telenovela e de representação depois da notícia que recebi:
“Alexandre Nero terá esclerose múltipla em 'A regra do jogo'” – nova novela das nove da Rede Globo
Quando li nasceram vários novos fios de cabelos brancos na minha cabeça só de pensar no que vem por aí…
Não, também não sou contra telenovela ou coisa do gênero. Como eu mesma digo nas muitas páginas da minha dissertação, a telenovela é um produto midiático com uma potência enorme. O problema é que essa potência enorme serve para o bem e para o mal. Como diz um dos autores que eu utilizo pra desenvolver minhas ideias, “ numa cultura contemporânea dominada pela mídia, os meios dominantes de informação e entretenimento são uma fonte profunda e muitas vezes não percebidas de pedagogia cultural: contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar – e o que não” (Douglas Kellner, A cultura da mídia, 2001, p. 10).
Também já li algumas pessoas dizendo que é ficção, que se tiver alguma coisa “errada” não tem problema. Então, vamos lá que eu desenho o problema pra você.
Desde 1965 a Rede Globo de televisão coloca no ar suas telenovelas. De lá até 2010 (meu levantamento foi até aí), foram 248 novelas, dessas, apenas 16 que apresentaram como personagens pessoas com deficiência. E todos foram ou vitimizados ou divinizados nas suas representações.
De 1965 até hoje, as deficiências e doenças são dadas a personagens como forma de castigo pelo mal que fizeram ou como forma de tornar esse personagem uma pessoa melhor, o que chamo de divinização. Há pouco mais de três meses escrevi um texto sobre a esquizofrenia dada a um personagem de uma novela das sete (leia http://goo.gl/HlyPCW ) como castigo. E a representação dele não foi diferente do errado senso comum de que todo esquizofrênico é perigoso.
E aí me pergunto, o que esperar dessa representação de pessoa com esclerose múltipla numa novela? Difícil de esperar algo maravilhoso depois desse histórico né?
E porque é tão ruim ter uma representação ruim do que é a esclerose múltipla? Bem, é ruim porque, como já diria o “papa” Stuart Hall, nós damos sentido às coisas conforme as representamos. As coisas, as doenças, as deficiências não tem um significado em si, elas passam a ter um significado quando as representamos de uma ou outra forma. Assim, “a cultura da mídia pode contribuir para a reprodução de discursos estereotipados e preconceituosos quando falamos em grupos minoritários (sexo, idade, classe, cor, habilidades), bem como pode propiciar uma visão mais positiva sobre esses grupos” (Bruna Rocha, 2012). Ainda, para os que dizem que não é real, lembro-vos que a telenovela, assim como a sua matriz, o romance folhetim, tem pretensão de real, e a isso se dá o nome de verossimilhança. Se ela não pretendesse parecer o real e fazer as vezes do real, as novelas seriam escritas com personagens marcianos, morando na lua… aí sim fugiria da vontade de real. Se ela não quisesse ser real, criava uma doença só pra novela, e não uma que milhares de pessoas convivem com e já acham bem difícil de conviver sem uma novela apresentando imagens distorcidas pra atrapalhar.
“Mas Bruna, eles podem fazer direitinho!” Podem! E eu realmente espero que façam. Mas aí, eu abro a tal reportagem sobre a novela e leio:
“A morte vai rondar Alexandre Nero novamente em “A regra do jogo”. Romero Rômulo, o protagonista da próxima novela das nove, vai descobrir ter esclerose múltipla depois de quase morrer enquanto transa com uma garota de programa. Na história, que estreia dia 31 de agosto, Romero vai sofrer com visão turva, desmaios e surtos em várias cenas. Ao ser levado para o hospital, ele vai ficar chocado com o diagnóstico.
[…] Com a proximidade da morte, Romero tira a menina da cadeia e se apaixona por ela”. (Fonte: Extra – grifos meus)
Sério gente, eu li e ri… ri alto. Afinal, ele quase morre transando com a guria por quê? Ela estava armada? Ela esfaqueia ele? Como assim quase morre de EM? Será que ele teve uma daquelas fadigas monstras e não explicaram direito que não se morre disso? Mééélllldelllllssss… sem cabimento. Também fiquei imaginando o que serão esses surtos em várias cenas. Me passou um milhão de cenas esdrúxulas. Mas, ok, eles podem fazer ele dizendo que está sentindo um novo sintoma, que não se acordou bem etc. Depois pensei: eles não vão dar o sintoma mais clássico da vida do esclerosado pro personagem, a fadiga. Até porque, se eles derem fadiga pra ele, se preparem pra uma novela tão agitada quanto as minhas tardes de verão…hahahahaha. (só pra deixar claro, as tardes de verão inexistem pra minha pessoa porque a fadiga come elas todas). A única coisa plausível aí é ele ficar chocado com o diagnóstico…
Piadas a parte, quando li a frase “com a proximidade da morte, blábláblá e se apaixona e blábláblá…”. Oi? Proximidade da morte porque? Tudo bem que pra morrer basta estar vivo. Mas a doença não traz a proximidade da morte.
Quando eu tive o diagnóstico, há 15 anos, li na internet que eu tinha mais ou menos 10 anos de vida pela frente. Eu já tô há 5 no lucro e pretendo ir muito longe nesse negócio, até porque, a EM não reduz significativamente a expectativa de vida da pessoa se comparada ao resto da população.
Isso tudo é provocado pela ignorância absurda de quem tá escrevendo a novela (a propósito, é o Sr. João Emanuel Carneiro… autor de A Favorita e Avenida Brasil… e conta com a direção de Amora Mautner, umas das melhores diretoras da emissora na minha opinião) e também de quem tá topando fazer. Quando se fala em doença, o roteiro tem sim que passar por especialistas. E quando eu falo em especialistas, estou falando de médicos, de fisioterapeutas, mas, principalmente, de quem vive com ela. E os atores, diretores etc tem sim que ver o que é viver a doença. Eles chamam isso de laboratório.
Porque agora, depois de 15 anos tendo essa doença e lutando para que as pessoas entendam que ela não é doença de velho, que não tem cura mas tem tratamento, que é possível viver com ela mesmo com todos os perrengues, que dá pra comer, transar, ter filho, casar, viajar, se divertir, estudar etc, que não é transmissível e mais um monte de coisa, eu vou ter que sentar do lado da minha vózinha, de 82 anos e explicar pra ela, de novo, que eu não vou morrer de EM. E que a morte me ronda assim como ronda todo mundo.
Como alguém que tem EM há tanto tempo, como uma mestre em comunicação social que estudou telenovelas e as implicações de representações de diferenças nelas, como doutoranda que estuda representações, discursos e identidades de pessoas em situação crônica de doença e como militante da conscientização sobre a esclerose múltipla, eu gostaria muitíssimo que essa representação respeitasse nossa luta, nosso cotidiano, nossas vidas. Claro que eles não têm como representar todas as pessoas com EM, porque cada uma é única. É só olhar as diferenças que temos aqui dentro de casa comigo e com o Jota. Mas respeitar a luta é fundamental. Isso eles podem e devem fazer! Mas, sinceramente, não espero muita coisa não. Sabe aquela coisa de “melhor não esperar nada porque se vier é lucro?”.
Lembrando que as duas únicas novelas que apresentaram de forma respeitosa e educativa o que é ter uma deficiência ou doença foram Viver a Vida de Manoel Carlos com a personagem Luciana que tinha tetraplegia e a novela Caminho das Índias, de Glória Perez, com o personagem Tarso que tinha esquizofrenia; ambas contaram com consultoria de pessoas que passavam pela mesma situação.
Algo me diz que essa novela vai aparecer muito aqui nesse espaço e no meu blog pessoal. Não tenho visto telenovelas depois do mestrado porque li tanto sobre o assunto e vi tanta coisa que me enjoei. Mas essa aí, por motivos pessoais e profissionais, vou ver pra poder opinar.
Sei que tem gente dizendo que é melhor que nada. Eu confesso que as vezes eu acho o nada melhor… porque o nada não soterra anos de trabalho pela conscientização; o nada não acaba com tudo que já fizemos pra acabar com a ignorância. Meu medo é começar a ouvir: “mas não é assim? Mentira… é sim, eu vi na novela”. “Passou na televisão que é…” enfim, coisas do gênero.
É perigoso porque por mais que a audiência de telenovelas esteja mais baixa e por mais que as pessoas entendam melhor que nem tudo que passa na TV é verdade, a audiência de telenovela é altíssima e a TV está presente em 95,1% dos lares brasileiros (IBGE, 2010). E porque ela é o principal meio de informação e formação da maioria das pessoas.
Um pedido que faço, inclusive aos ateus: Oremos!