Temos a mesma doença, Esclerose Múltipla, mas a vivemos de formas distintas. Se procurarmos nos livros e manuais médicos a encontraremos sob o mesmo CID, com os principais sintomas, hipóteses, tratamentos etc. No entanto, as observações contidas ali não são suficientes para descrever nossa experiência diária com ela. Não somos iguais e nem o mundo que nos rodeia.
Certos aspectos são restritos unicamente ao indivíduo. Coisas como pioras, melhoras, sensações e outras realidades fazem parte do nosso check-in diário e podem ser comparadas cronologicamente, o antes e o depois: anteriormente sentia formigamento só na mão, agora sinto no braço todo; ontem minha perna não estava com tanta espasticidade; felizmente aquele embaçamento visual passou. Todavia, não se pode perder de vista que certas coisas independem do corpo, mas que, sem dúvida, agem diretamente sobre ele. Ou seja, são estruturais e simultâneos.
Esses elementos podem ser mais imateriais ou ideológicos, como, por exemplo, as construções a respeito da sexualidade e gênero, como as que tratei nos últimos posts, ou estarem diretamente ligadas às condições materiais do sujeito. E é sobre elas que quero falar hoje. Ter esclerose não é apenas uma experiência individual, não depende apenas de nós, do nosso corpo, mas se relaciona intimamente ao ambiente em que estamos e, nesse, nem sempre temos o poder de escolha. Quando podemos agir sobre o ambiente e deixá-lo mais EM friendly é melhor. Como sempre diz a Bruna: não somos tão esclerosados em casa, pois ela está toda adaptada para gente, desde os utensílios da cozinha às barras no banheiro.
Hoje, felizmente, conseguimos realizar essas coisas e com dois esclerosados em casa não foi difícil argumentar sobre a necessidade das adaptações. Mas, pra mim, nem sempre foi assim. Ar condicionado era um luxo que nem pensava em possuir, pelo preço do aparelho e da conta de luz. Gastava grande parte do meu dinheiro com aulas de yoga, pilates, psicóloga, coisas que acreditava poder melhorar minha falta de força e equilíbrio. Por isso, minhas contas estavam quase sempre comprometidas, quando não no vermelho. Por sorte, à época não precisava gastar muito em remédios e, quando precisei, já não estava saindo tanto de casa e consegui economizar uma grana.
Quando dava fazia gambiarras para tentar vencer os percalços. Uma vez peguei os gelox do freezer e os coloquei em frente ao ventilador na altura da cama para ver se conseguia me refrescar um pouco. Enquanto não tinha bengala, andava me apoiando nas paredes e móveis dentro de casa e, na rua, em muros e postes. Ter esclerose poderia ser bem mais fácil, caso tivesse acesso a tais oportunidades. E isso que não tinha família ou dependentes para cuidar e podia gastar quase tudo que recebia comigo.
Atualmente, tenho o que preciso. Eu e a Bruna vivemos sem extravagâncias, mas conhecedores de nossos limites. Apesar deles, podemos obter o necessário, mesmo que às vezes precisamos colocar na ponta do lápis se podemos comprar um livro desejado ou sair pra beber com amigos. Mas nos gastos, colocamos a EM como prioridade. Todavia, temos que reconhecer a condição financeira como um importante limitador para o tratamento e qualidade de vida.
Mesmo assim, aconselho correr atrás de todos os facilitadores que possam ser obtidos, para favorecer a vida com a doença. E nisso não falo só de direitos a cotas, isenção de impostos ou vagas preferenciais, estou falando de tratamento mesmo. Felizmente temos o SUS, que apesar de todos os problemas conhecidos e de estar longe do ideal, é uma ótima ferramenta e pode nos auxiliar bastante, pois serve a todos os brasileiros, independente de renda ou se você tem um plano de saúde (indico aqui a palestra do Dr. Marco Aurélio, advogado e blogueiro da AME, no 2º encontro de pacientes e blogueiros de EM). Além da nossa medicação principal para EM, também podemos conseguir outros medicamentos sintomáticos nos postos e, caso algum não seja disponibilizado pelo governo, esse pode ser judicializado, através da defensoria pública.
Nem sempre é simples ou fácil. Às vezes as condições não são as ideais. Exames e terapias podem ser demorados, carros de transporte disponibilizados pelas prefeituras podem ser em horários ruins e as viagens muito longas para tratamentosque são rápidos. Mas temos que correr atrás e buscar o que podemos obter independente da situação financeira. Bons tratamentos e materiais de auxílio estão disponíveis mesmo sem precisar gastar algo.
Desde 2014 faço fisioterapia pelo SUS. Também pelo SUS, esse ano comecei meu tratamento na AACD e lá tenho fisioterapia, acompanhamento psicológico, terapia ocupacional e fonoaudiologia, tirando as consultas com o fisiatra. Também por lá, consegui uma cadeira de rodas manual e outra motorizada. Para ir até lá todas as tardes, tirei meu passe de ônibus de isento com direito a acompanhante. Mesmo com as limitações financeiras, podemos obter benefícios. A isso, apesar de certos constrangimentos estruturais, a responsabilidade volta a ser individual. Temos que fazer a nossa parte. Sei que, cabe a mim, ser assíduo nos tratamentos e enfiar a cara na rua para que os outros percebam a necessidade da acessibilidade.