Olá! Tudo bem? Antes de começar a nossa conversa, preciso me apresentar. Me chamo Vitória, tenho 35 anos, sou mãe da Lara, companheira do Márcio e filha da Sônia. Sou psicóloga de formação e, com muito orgulho, represento a AME no Conselho Nacional de Saúde. Dito isso, quero contar um pouco da minha história. Aos 16 anos de idade me tornei uma mulher com deficiência. Sabe bala perdida, aquela que a gente ouve pelo noticiário, mas acha que nunca encontrará a gente? Pois é, me encontrou.
Passei pela UTI, centro de reabilitação e confesso que levou um tempo até eu compreender que a minha condição não era passageira. Nesse período, quis acreditar em curas inexistentes ou alternativas que pudessem mascarar quem eu me tornara. Nesse processo, adiei planos e vida. “Quando eu voltar a andar” era meu mantra.
Percorrer as ruas era (continua sendo) difícil, tanto pelas barreiras impostas em cada calçada, como pelos olhares que me faziam questionar se as ruas ainda eram o meu lugar. E usar a cadeira de rodas então?! Insuportável. A cadeira era a lembrança diária de um corpo estranho pra mim, para aos outros e para os mais diferentes espaços. Meu corpo passou a ser a representação de um corpo imperfeito… (e hoje me pergunto, será que um dia entendi meu corpo como perfeito, mesmo antes da deficiência? O que é ser perfeito/normal? Tu conheces alguém que se perceba integralmente nesse lugar? A que e a quem essa falsa perfeição serve?)
Precisei de um tempo pra me redescobrir, mas meu maior aprendizado foi que a vida tem pressa. Como seguir com esse “corpo quebrado”? Eu não fazia ideia, mas entender a necessidade do “seguir” foi o meu recomeço.
A deficiência foi sinônimo de vergonha por um bom tempo. Hoje, ao olhar para trás, acolho e compreendo esse sentimento, mas não o reconheço mais.
É rotineiro pessoas com deficiência ouvirem de estranhos perguntas como: “tu nasceste normal?”, “o que houve contigo?”, “isso é passageiro?”. Quando ouvimos as afirmações “nem parece que tu tens deficiência”, “coitada/o, olha a situação dela/e” ou, como é dito a mulheres grávidas, “o importante é que venha com saúde”, o que elas querem dizer?
Tu já paraste para pensar sobre deficiência, para além de valorizá-la como algo negativo? A vergonha que senti não era sobre meu corpo ou condição, mas pela forma que me fizeram compreender a deficiência.
Corpo quebra, adoece, respira, marca… Como disse Guimarães Rosa, “Viver é um rasgar-se e remendar-se”. Deficiência é a lembrança cotidiana que não somos imortais, que adoecemos e temos diversas formas de ser e estar no mundo. Deficiência é vida, choro, gozo e oportunidade.
Passados 18 anos, entendo que essa discriminação (por vezes comunicada como se fosse cuidado) destinada a pessoas com deficiência tem nome: capacitismo. Já ouviste esse termo? Ele é a ideia que corpos como o meu são incapazes. Integralmente incapazes, o que é cruel e extremamente limitante. É o capacitismo que faz com que crianças com e sem deficiência não tenham oportunidade de estarem juntas, que os espaços não sejam feitos para todos e que, mesmo sendo 23,9% da população brasileira, representemos apenas 1% dos empregos formais.
Quantas pessoas com deficiência já vistes em filmes, teatros, novelas? Quantos músicos com deficiência tu conheces? Quantas lideranças com deficiência passaram pela tua vida escolar e profissional? Essa estrutura desigual que nos afasta dos espaços de decisão e representação contribui para a ideia que uma vida com dignidade é incompatível com a deficiência.
Compartilho com vocês minha história para que possamos repensar nossos caminhos, inclusive enquanto sociedade. Quantas vezes já reproduzimos o capacitismo, tanto ao olhar para o outro, como ao nos perceber e imaginar nesse lugar?
Deficiência é inerente a condição humana e precisamos, com urgência, romper com essa ideia de incapacidade, que nos limita e limita o outro. Por acreditar que a fala dá significados aos nossos sentimentos e que ao compartilhá-la ganhamos novos sentidos, quero propor: vamos falar sobre deficiência?
por Vitória Bernardes