Uns meses atrás, visitei a bela Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina. Andando pelas ruelas e ruas da velha cidade dos Bálcãs, recordei, algo entristecido, um dos meus passatempos juvenis perdidos: caminhar pelo centro histórico das cidades. Na minha adolescência ou na minha primeira juventude, costumava andar interminavelmente pelo centro de Lima ou do Rio de Janeiro. As igrejas antigas, os museus, as praças, os eventos históricos em tal ou qual esquina… Fosse para ir à biblioteca ou a algum show, nunca houve distância que eu não estivesse disposto a encarar. Avenidas, ruas, calles, jirones, travessas…
Até a EM aparecer, e as sequelas infranqueáveis da doença tirarem aos poucos essa capacidade essencial de andar.
Talvez, esse prazer de viandante empedernido seja o privilégio mais caro que a esclerose múltipla levou. O fundamental privilégio de caminhar, sem fadiga, sem dificuldade de deambulação, sem necessidade de descansar a cada cinco minutos, sem espasmos, sem medo de tropeçar com qualquer obstáculo mínimo, sem esclerose múltipla enfim.
Aqueles foram momentos melancólicos no coração dos Bálcãs. Estávamos em pleno verão europeu, o que exasperava a minha fadiga. Sentado em um banco de praça, como um ancião no ocaso dos dias, lamentei meu destino de deficiente. A beleza em cada canto, a história das culturas que convivem ali, a imponência da cidade erguendo-se das ruínas pouco mais de vinte anos depois de ser o palco trágico da Guerra da Bósnia.
Naquela altura, a esclerose já tinha feito estragos, e as sequelas me limitavam bastante. Parecia que nada restava daquele adolescente citadino que caminhava incansável. Entre mesquitas1, cevapi2, a ponte em que assassinaram o arquiduque3, as ruas de pedra e o mercado turco, lamentava não poder visitar todos os pontos turísticos, como qualquer pessoa mais ou menos saudável faria.
Mas como poderia estar tão triste e melancólico? Como poderia ser tão pouco indulgente comigo próprio? Tão ingrato com minha vida? Era um privilegiado e tanto, por contraditório que possa parecer. Com os meus bons trinta anos, estava conhecendo um país longínquo, com influências dos grandes impérios da antiguidade, o romano, o turco e o austro-húngaro. E, mesmo aos trancos e barrancos, ainda conseguia caminhar, ir pegar o bonde que circunda a cidade ou ir até a esquina para tomar um café turco com a minha noiva.
Mais expectativas? Veja-se o que diz o poeta argentino Oliverio Girondo:
“No aspiro a
transmutarme,
ni me tienta el reposo.
Todavía me intrigan el absurdo, la gracia.
No estoy para lo inmóvil,
para lo inhabitado.”
A vida sempre vale a pena. Sem EM, valeria a pena. E com EM, também, e talvez até nos faça perceber mais fortemente o quanto é bom estar vivo.
Quiçá, esse seja o melhor aprendizado que a esclerose múltipla me trouxe. A gratidão, ampla, irrestrita, sem meias palavras. Como remata a voz inconfundível de Miguel Abuelo4, “Más allá de toda pena, siento que la vida es buena”. Muito além de toda pena, também sinto que a vida é boa. Apesar dos pesares, a vida é boa, sim.
E vi isso, de coração aberto, no verão europeu, aos olhos da capital da Bósnia e Herzegovina.
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Notas
1 Em torno de 45% da população da Bósnia é composta por muçulmanos, denominados da etnia bosniak.
2 O Ćevapi é um tradicional prato bósnio que consiste em pequenas salsichas de carne moída de vaca ou carneiro, temperada com cebola e alho.
3 Em 28 de Junho de 1914, o Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, foi assassinado em Sarajevo. Este evento foi o detonante da Primeira Guerra Mundial.
4 Miguel Ángel Peralta ou Miguel Abuelo foi o vocalista e líder da célebre banda de rock argentina Los Abuelos de la Nada. Faleceu, vítima de AIDS, em 1988.