Eu tenho medo. Confesso, eu tenho medo. A Esclerose Múltipla geralmente é definida como uma doença do Sistema Nervoso Central (SNC), autoimune, degenerativa, incurável, mas não letal. Todavia, essa definição esconde uma particularidade. Por um lado, esconde uma verdade, de que tudo aquilo que recebe estímulo dos neurônios e é controlado pelo cérebro pode ser afetado: pulmões, coração, músculos etc. Ou seja, você pode não morrer diretamente por causa da EM, mas por consequências do que ela pode ocasionar. Por outro, de que somos responsáveis por uma vida que exige cuidados constantes.
Semestre passado, perdemos um grande amigo nosso (meu, da Bruna, do Francisco e da minha mãe), o Luiz. Toda dinâmica da casa foi abalada com a notícia de sua morte. Enquanto eu, silenciosamente, tive que lidar com os meus próprios dramas particulares e pensar no significado daquele fato para mim. As coincidências eram muitas.
Além de nós dois termos EMPP, usarmos cadeiras de rodas, também compartilhávamos remédios que já não serviam para mim, mas eram úteis para ele. Quando ele morreu esperava o resultado judicial de um processo do mesmo medicamento que utilizava. A comparação foi inevitável e a sensação do “podia ser eu” um elemento muito forte e profundo..
Eu mesmo, durante o ano de 2019, passei por muitas dificuldades; alucinações, 3 internações hospitalares etc. Se algo fosse acontecer esperava que fosse comigo. Via o Luíz como alguém que estava a um passo atrás de mim. Se ele reclamava de dificuldade na escrita, já tinha tido isso antes. Se dissesse que tinha dificuldade respiratória e na fala, era algo que já tive tempos antes. Quando ele morreu, senti que ele tinha subvertido essa ordem. Não que desejasse morrer antes, mas não esperava sua ida prematura.
O fato é que sua morte me fez abrir os olhos de forma mais atenta para mim e para meu corpo. Minha pressão estava alterada. O meu pé está cheio de marcas de pressão e pontos roxos. Tenho que utilizar meias de compressão por causa de problemas circulatórios devido aos longos tempos sentado na cadeira de roda. Meu quadril constantemente tem algumas marcas avermelhadas de pressão, que cuido para não virarem escaras. Desde fevereiro de 2019 perdi a capacidade de ficar em pé para fazer transferências, impossibilitando que subisse na cama para o utilizar o papagaio (para fazer xixi espontaneamente).
No início, improvisamos uma transferência com o auxílio de duas pessoas (da minha mãe e da Bruna). Mas logo decidimos investir em um guincho. Todavia, essa nova situação me levou a outra nova condição urológica: as sondagens. Talvez por conta delas, talvez devido a influência de medicamentos que abaixaram a minha imunidade, tive minhas primeiras alucinações e infecções urológicas. Em decorrência dessas coisas, tive a minha primeira internação hospitalar.
A partir dessa experiência, adotei o uso das fraldas constantemente na minha rotina. Na primeira internação ganhei de presente uma bactéria hospitalar resistente, KPC, aproveitadora de condições em que a imunidade da pessoa está muito baixa. Essa condição me levou a duas outras internações e novos episódios de infecções urinárias. A bactéria está controlada, embora ainda esteja aqui.
Hoje, vendo no espelho o corpo debilitado e enfraquecido que possuo, só posso me apegar à potencialidade de uma identidade futura. Algo que ainda não está lá, mas que só está disponível enquanto possibilidade no presente. É uma promessa que exige ações e cuidados no presente, e que possam vencer o medo em um tempo de isolamento social. Que vençam o egoísmo de um cuidado centrado unicamente em si, e que emerja enquanto solidariedade ao outro.
O autocuidado se torna uma política de cuidado ao outro,. Tudo o que relatei até aqui foi no entanto apenas um diagnóstico, que me levou a um processo de reflexões e ações práticas. A partir disso, listei algumas atitudes para mim, que me levaram a uma postura mais ativa, mas no próximo trago elas aqui, inclusive o fracasso em cumpri-las.