No último post falei sobre minha preferência do tempo ao dinheiro. Lógico que não sou ingênuo de achar que essa escolha está disponível a todos. Tenho certeza que pude escolher isso devido ao esforço e as condições de meus pais em suprir as minhas necessidades materiais básicas e que permitiram eu fazer essa opção. Nunca tive uma vida de exageros e extravagâncias, mas também nunca passei necessidades. Assim, peço licença para falar de um caso particular, o meu caso, só para não ficarmos no campo do hipotético e ilustrar de maneira mais pontual como lidei com as mudanças que apareceram com a Esclerose Múltipla.
Alguns não sabem, mas tenho uma vida passada de músico. Antes de historiador, era guitarrista. Cheguei até a fazer faculdade nessa área. No entanto, antes de iniciar os estudos acadêmicos em 2005, era guitarrista em uma banda e professor em uma Escola (função que exerci até final de 2010).
Era um guitarrista comprometido e disciplinado. Estudava horas, fazia shows e apesar de sempre me achar ruim, até que era admirado e respeitado pelas plateias, amigos e profissionais do meio. Hoje, distante da imagem projetada por aquele jovem, posso até me arriscar em falar: ah, até que eu tocava direitinho. Escrevi um pouco mais sobre isso em outro espaço (quando tiver o link coloco aqui) e um dia quero falar sobre o que sinto quando vou a um show e vejo alguém tocando algo que fazia. Mas enfim… Esse não é o momento. Todavia, quem quiser ouvir um pouco dessa vida passada coloquei algumas músicas na minha conta do youtube: Mr. Crowley – Ozzy Osbourne (cover, banda Arcan, fiz a guitarra solo), Déjà Vu (Autoria minha, rock, banda Arcan), e Luas do Atlântico (Autoria minha, jazz).
Apesar de me achar um guitarrista mediano me considerava um ótimo professor. Fazia métodos, apostilas, me aplicava nas aulas e nas necessidades individuais de cada aluno. Muitos caras que eram meus alunos se tornaram grandes amigos e professores na Escola em que trabalhava. É gratificante poder acompanhar a evolução de algum antigo aluno e encontra-lo(a) num palco qualquer da vida. Você se sente feliz por ter feito parte daquela história. Acho que também por isso aprecio tanto a carreira docente.
Saí da banda em 2005 e parei de dar aulas de guitarra e teoria musical em 2010. No entanto, essa decisão em nada se deve a EM. Apesar de que no segundo caso já apresentava uma leve dificuldade em certos solos e acordes. Mas a isso culpava a falta de treino e não achava justo com os alunos ter um professor que não tocava perfeitamente aquilo que exigia nos exercícios. Em verdade, sabia que já não tocava mais como antes. Meu interesse estava em um outro e novo lugar.
A partir de 2007 comecei a faculdade de História (sim, por muito tempo fiz as duas faculdades. O que não desejo e recomendo a ninguém). Acho que a minha preferência pelo tempo vem daí. Às vezes, em apenas um dia me deslocava para 3 cidades diferentes: de manhã São Paulo (Faculdade de Música), à tarde Suzano (Escola de Música) e à noite Guarulhos (Faculdade de História). Cortei bastante horários como professor e o que ganhava era quase tudo empregado em moradia, alimentação, Xerox e transporte. Isso com a ajuda de minha mãe.
Como tentava manter as leituras da faculdade de História em dia, a música acabou ficando em segundo plano. Sei que a EM não teve nada a ver com essa escolha, mas precisava mais de tempo para ler do que de dinheiro. Contentava-me com o básico, apenas para pagar as contas e usufruir de certas diversões.
Durante a faculdade de História, comecei a dar aulas em um cursinho. Não me sentia tão seguro quanto era como professor de música, mas adorava aquela experiência. Essa atividade, mais do que a música, foi afetada diretamente pela EM. Tive várias turmas nos três anos que passei no cursinho, mas consigo distinguir bem a diferença entre cada etapa.
No primeiro ano, apesar de ser um professor mais inseguro e menos claro, andava mais pela sala durante as explicações e não me cansava tanto. No segundo já não andava tanto. Restringia-me a parte da frente da sala e me cansava mais, tanto das aulas quanto dos deslocamentos. Às vezes, achava que minha dicção enrolava um pouco e as palavras que queria dizer simplesmente sumiam.
No terceiro ano, já me cansava bastante. Precisei cortar as aulas do período da tarde, ficando só com as da manhã, quando o tempo estava mais agradável. Ficava restrito à frente da sala e me deslocava apoiando na lousa. Com as limitações que me impus e uma maior experiência profissional, vi melhoras na memória, na dicção e apresentação do conteúdo. No entanto, uma nova dificuldade se apresentava: escrever no quadro. Os alunos reclamavam da minha letra e palavras confusas eram motivo de risada entre nós. Esses momentos eram engraçados e quebravam um pouco da seriedade da aula. Queridos! Uma turma um dia me deu um presente: um caderno de caligrafia com exercícios em que tinha que escrever que aquela era a melhor sala da Escola. Legal, né? Guardo até hoje esse mimo. Mal sabiam eles que antes minha letra era super bonita, o que muitos diziam parecer com “letra de menina” e que aqueles garranchos eram culpa da EM.
Já com o diagnóstico, decidi não me comprometer mais com essa atividade e parei de dar aulas. Não sabia como ia ficar com as novas rotinas de exames e tratamentos. Em 2012, comecei o mestrado em História. Apesar do stress com prazos, leituras e textos a escrever, ainda assim era uma escolha mais possível de administrar uma atividade remunerada e prazerosa com as exigências da EM.
Hoje, tenho as atividades do doutorado e aquelas que realizo aqui na AME. Atividades que me dão muito prazer e que me envolvem e engajam de maneira profunda. Faço praticamente tudo de casa e com um computador. Com essa estrutura consigo o tempo para ir a consultas, exames e tratamentos. Minha agenda pode ser mais flexível. A EM me exigiu mudanças. Não pude lutar contra forças que estavam além das minhas energias e escolhas. Tive que me adaptar, mas não deixei de procurar atividades que pudessem me dar prazer, adequando os gastos e as expectativas dentro das condições financeiras à nova realidade.
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