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A ideia de que os nossos pertences nos protegem talvez tenha uma origem remota, cavernícola. Veja-se tanto absurdo: uma casa cheia de quartos sem gente, um carro para uma viagem que nunca faremos, um seguro de vida e um plano funerário, uma poupança a prazo fixo que será resgatada na doença ou na velhice, celulares futuristas que nos afastam até de nós próprios… Todos os tijolos da nossa fortaleza nos salvaguardam em meio da sociedade do espetáculo e do consumo. Os planos extravagantes que traçamos, porém, batem de cara com aquilo que chamamos vida. O rigor do inapelável destino destrói os nossos planos espalhafatosos como a erupção do Vesúvio destruiu Pompéia.

Os portadores de EM entenderão bem como é esse momento crítico do diagnóstico. Triste, mas revelador também.

Eminentes homens de letras nos legaram célebres elogios. Dos mais variados. Para nomear os mais famosos, temos elogios da Sombra, da Loucura, da Serenidade, da Mentira, da Corrupção, da Madrasta, da Mão, da Injustiça ou do Lazer. Paul Lafargue defendeu “O Direito à Perguiça”; Lima Barreto, “o mulato genial”, por sua parte, não fez precisamente um elogio, mas sim uma apaixonada e jocosa Apologética do Feio. Pareceu-me não haver objeto que não merecesse ser elogiado.

Eu, que não arrisco intentos literários demasiado pretensiosos, me vi com o dever incontrastável, embora modesto, de fazer um elogio também. Porém, como em quase tudo na minha prosaica vida, nem nesta empreitada consegui ser pioneiro. Longe disso. Van Gogh, o ímpar impressionista holandês, deixou várias pinturas dos seus sapatos. E, a propósito deste texto que agora escrevo com denodo, fiquei sabendo que o poeta panamenho César Young já escreveu um belo “Elogio del zapato”.

Então, decidi fazer, talvez excessivamente narcisista, um originalíssimo Elogio dos meus sapatos velhos, que também têm esclerose múltipla. Porque meus sapatos sabem o quanto me ajudam a não cair por causa das sequelas da doença. Estabelecemos o pacto tácito dos amigos. Meus sapatos, ligeiros como um acrobata, vetustos como o vinho, fieis como Lassie, merecem não só meu singelo reconhecimento, mas também um elogio. Amplo, geral e irrestrito, como se diz. Nada mais justo. Quando deambulo pelas ruas, eles são como solenes mosqueteiros, espadachins, valetes que me protegem dos tropeços nas encostas inimigas.

E cada vez que passo um pano para limpar os meus queridos sapatos velhos, ou quando caminho devagar para não tropeçar com a minha própria sombra, lembro-me bem desses belos versos do poeta César Young:

“Mis mejores amigos los zapatos,
deben llevarme presto hasta mi casa,
que ya perdí contacto con la tierra,
y de un momento a otro sin pensarlo
voy a estar haciendo aguas en la luna.”

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