Acessibilidade. Ou uma outra forma de ler o mundo

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O mundo é aquilo que construímos sobre ele. Raramente, conseguimos ver o que ele é de verdade.  Vivemos dentro das representações e ilusões que criamos para contar e viver nossa própria história. No entanto, há um momento em que somos chamados a enfrentar as coisas com maior realidade. Ou pelo menos necessitamos criar novas formas e categorias para entender a vida que nos cerca.

Fui ao aniversário de um amigo muito querido e conhecido de vários cursos e turmas da faculdade. Ele havia reservado uma pizzaria e conseguido reunir muitos colegas. Alguns ainda frequentavam o curso, outros já haviam se formado e tinham no encontro uma oportunidade de se rever e saber das novidades. Fatalmente, esse clima agradável de reencontro e conversas nostálgicas seria prejudicado pelos horários rígidos de fechamento de uma pizzaria. O papo estava tão bom que deveria ser transplantado para outro bar, em uma confraternização que atravessaria a madrugada.

Saímos da pizzaria que fechava e ficamos de decidir um novo local. Fomos para a rua e esperamos na porta do estabelecimento. Alguns foram andando na frente para achar um lugar. Eu me agarrei em um poste, desses que ficam nas esquinas com os nomes das ruas que se cruzam. Meu equilíbrio não estava lá muito bom e, apesar de conseguir algo em que me apoiar, logo senti minhas pernas reclamando um lugar para sentar.

Minhas pernas e meu corpo doíam, mas valia tudo para estar com amigos queridos e continuar aquela agradável conversa. Já estava ficando ruim se apoiar no poste que segurava. De repente, um  celular tocou. Era alguém daquele grupo que havia ido na frente. Passados alguns minutos, o destinatário, que terminava a ligação, virou para a galera, parada ali na esquina, e disse: Vamos lá, pessoal, eles estão em um bar no número 800 e qualquer coisa.

O pessoal se mobilizou para ir. Eu olhei a numeração da pizzaria e vi o número 2800. Ou seja, teria que andar aproximadamente dois quilômetros para chegar ao novo bar. Na hora fiquei meio desorientado. Sabia que do jeito que estava não conseguiria caminhar tanto. Estava animado e disposto a continuar aquela noite, apesar das dores e desconfortos. Mas aquela sugestão me foi um balde de água fria.

Essa ocasião me marcou demais. Ali mudei. Decidi ir para casa e peguei o primeiro ônibus que me deixava perto do meu prédio. Conversando com um amigo que pegou o mesmo ônibus, desabafei: Se as pessoas fizerem questão da minha presença, a partir de agora terão que escolher lugares que seja possível eu ir.

O mundo mudara. E essa nova percepção tinha, ao mesmo tempo, um misto de nostalgia e ignorância. Nostalgia por uma identidade que ficou ali naquela esquina e não se mostrava mais possível e ignorância por experimentar um mundo novo, que sempre esteve ali, escondido e ignorado pela minha percepção. Vivemos o mundo conforme o representamos. Para isso, utilizamos uma série de categorias para analisá-lo: direita x esquerda; moderno x pós-moderno; preto x branco; civilização x barbárie; doce x amargo, etc. Naquela noite, desde que decidi voltar para casa e entrei naquele ônibus tive que lidar com duas novas formas de interpretar o mundo: acessível e não acessível.

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