Radovan Karadzic, psiquiatra profissional e poeta amador, defensor fervoroso da ideia da Grande Sérvia, tornou-se um fugitivo da justiça internacional em 1996, um ano após o Acordo de Dayton, que pôs fim à Guerra da Bósnia. Acusado de genocídio e crimes de lesa humanidade, conseguiu escapar durante mais de dez anos. Foi preso em julho de 2008, em Belgrado, capital sérvia.
A guerra da Bósnia estourou em 1992, quando o país declarou a sua independência. A velha Iugoslávia do Marechal Tito ia se despedaçando como um vidro temperado. Ódios étnicos refloresceram vigorosamente em uma região em que conviviam muçulmanos, católicos e ortodoxos. Deste assunto inteirei-me alguns anos depois, nas aulas de geografia da escola. E também quando li, nos fundos de uma empoeirada biblioteca, uma revista de 1996 que trazia, entre notícias das Olimpíadas de Atlanta, uma longa reportagem sobre a vida do tal Karadzic. A nota era acompanhada por uma foto em que destacava o cabelo grisalho e desarrumado, “de poeta”.
Data venia, eis a minha história, que passo a contar agora.
Esta história aconteceu em 2012, quando eu fui morar no interior do estado de São Paulo. Foi numa noite que só não era absolutamente solitária porque tinha a companhia de uma cerveja. Entre novas sequelas da EM, andava tentando me acostumar à nova cidade, ser mais indulgente comigo próprio, bater em retirada de guerras perdidas, esses amores inesquecíveis e já esquecidos. Foi então que um grupo de estrangeiros sentou-se na mesa do lado. Notoriamente, tratava-se de estrangeiros pelas frases em inglês com diferentes sotaques.
Talvez foi a curiosidade, talvez a cerveja, talvez, na falta de melhor causa, a imprevisível vontade dos deuses que urdem o destino. “Where are you from?”, arrisquei em um inglês enferrujado. “Austria. Well, actually I’m from Bosnia, but live in Austria”, respondeu. Então, como escolar diligente que sempre fui, lembrei-me do assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 1914. O célebre evento foi o estopim da I Guerra Mundial, e também foi o estopim daquela conversa. “Gastei” meu inglês e meu conhecimento escolar sobre a Iugoslávia. Lembrei-me da Guerra da Bósnia e, “no auge da minha agonia”, lancei mão do que li sobre Karadzic. Isto foi providencial e a conversa rendeu algumas horas.
Durante o tempo que ela esteve por aqui, nos encontramos mais umas duas ou três vezes. Ela voltou a Viena algumas semanas depois. Prometemos não nos separar, embora essa promessa fosse mais retórica do que realista. A “magia da Internet” nos permitiu manter o contato à distância. Durante quase quatro anos, trocamos e-mails e cartas. Nos alvores de 2016, ela finalmente voltou ao Brasil. Desta vez, com um visto de estudante de mestrado. E sem passagem de volta.
Se vinte anos atrás eu imaginasse a minha vida em 2017, poderia projetar o mundo de possibilidades que só a fértil mente das crianças é capaz de criar. Porém, entre as infinitas combinações, em nenhum panorama estaria como estou agora: com esclerose múltipla recorrente-remitente, no interior do Brasil, tentando aos trancos e barrancos me manter em pé.
E, muito menos, insuspeitamente, providencialmente, quase milagrosamente, me imaginaria ao lado de uma menina oriunda daquele remoto país no coração da península dos Bálcãs. Afinal, a distância que separa Lima de Sarajevo é de 11 373 km, quase duas vezes o raio do nosso planeta Terra e quase sete vezes o raio da lua.
As disposições da vida são insubornáveis. Mas nessas guerras compulsórias também há tréguas. Agora eu sei, de um saber indubitável, que não há nem distâncias nem deficiências insuperáveis. A mão que aperto firmemente quando caminho pela rua para não tropeçar, heroicamente e solenemente, está aqui, do meu lado, no Brasil, na América do Sul.