Amigos Múltiplos! Gosto tanto desse nome! Ele soa bem não é? Hoje estou estreando na experiência como Blogueira da AME e estou muito feliz! Então… Amigos Múltiplos, olá!
Esse espaço será para publicação de histórias (auto)biográficas. Vou escrever sobre minhas experiências pessoais, mas também sobre histórias que me contam. Já escrevi na minha apresentação que gosto de ouvir histórias de vidas, das mais comuns, dos cotidianos mais simples e aparentemente banais. Eu trabalho com Histórias de Vidas de pacientes com Esclerose Múltipla, ouço as histórias, gravo em áudio e vídeo, reescrevo, monto acervos e estudo essas histórias.
Hoje vou contar um pouco como cheguei a esse trabalho. Como tudo começou. Depois do diagnóstico, em 2012, fiquei bastante perdida. Tentei levar meu trabalho como antes… mas não deu certo! Aquele corticoide todo da primeira pulsoterapia, o baque da incerteza… tudo aquilo mexia muito comigo. O fato era que eu estava lenta fisicamente, com um zumbido no ouvido e com muita raiva. Ia à psicóloga toda semana, chorava muito, e reclamava que eu tinha a sensação de que uma velha cansada, chata, histérica, esclerosada havia se apossado do meu corpo (no estereótipo do senso comum do que seria a histeria e uma esclerosada, mas quando a emoção da raiva toma conta a gente não pensa!). Eu tinha 38 anos na época e tinha um corpo de 90 na maior parte do dia. Pensava, desejava, me projetava como uma mulher de 38 e o corpo não respondia. E eu brigava com a idosa! Afinal, não podia ficar dormindo? Estava acordada em lugar errado! Raiva, intolerância com a velhinha! E eu passava o dia brigando com ela. E um dia a psicóloga me perguntou o que aconteceria se eu descobrisse que a personagem que inventei se chamasse Raquel? Não! Não podia ser! Eu, Raquel, era uma mulher de 38 anos, com um corpo de 38, com a disposição, energia, força, rapidez típica da minha idade! E descobri que minha negação era muito maior do que eu podia imaginar. Eu inventei uma personagem para não precisar dizer em primeira pessoa “Eu tenho esclerose múltipla”. Não! Impossível dizer essa frase. “Ela, a velhinha tem EM”.
Um dia, eu precisei viajar a trabalho e meu médico havia me dado uma receita da medicação e uma declaração de que eu era paciente com Esclerose Múltipla. Era a primeira vez que eu ia viajar com a medicação, quando cheguei em casa e li meu nome associado àquela identidade… caí aos prantos! Não era eu! Ou o dia que o laboratório me ligou e perguntou sobre a Raquel, portadora de Esclerose Múltipla. Eu não consegui dizer “sim, sou eu”. Parece idiota esses eventos, mas eles me diziam que a velha que eu tinha inventado era um caminho menos dolorido para falar da EM. E era divertido com os amigos! Eu fazia todo mundo rir com as histórias da idosa e me esquivava da primeira pessoa.
2012 foi um ano de teimosia, de muita frustração, de tentar fazer acontecer como era antes. De muito mau humor, de muita raiva e de muito choro! No trabalho eu me sentia desafiada, confiava que ia dar certo e teimava incessantemente! E a velhinha me dava nocautes seguidos! As pequenas coisas que eu conseguia fazer tinha sabor de uma vitória completa! Coisas simples e eu me enchia de prazer! Eu me sentia viva! Meio infantil até… e eu escrevia pequenos “drops” e postava no meu facebook, como esse do dia 28/12/2012:
“Hoje tomei banho de chuva e me emocionei! Posso sentir… sentir as gotas da água, o cheiro da terra molhada e meu filho comigo rodando e gargalhando, e isso me deixa feliz! 2012 ficará marcado pra sempre como o ano em que ouvi meu diagnóstico de Esclerose Múltipla, e nos primeiros dias no hospital cantarolei a música Epitáfio, do Titãs, e então resolvi que ainda é tempo de sentir a vida… o verbo eu "devia ter" vai, passo a passo, se misturando com o eu "posso ainda fazer"… e hoje foi o banho de chuva e a vida não para!”
E esse outro em seguida, no dia 29/12/2012:
“O desafio de hoje foi um pouco maior do que tomar banho de chuva, mas tão emocionante quanto… Fui subir as cachoeiras da Reserva Particular do Patrimônio Natural RPPN E.F. Battistella, em Corupá. Claro que não subi as 14… há 6 meses atrás o desafio era ficar 30 minutos na esteira… 10 min, 15 min, 20…30… e hoje subi até a quarta cachoeira. Desci emocionada, com orgulho de mim mesma e o melhor, na companhia de amigos de infância! Um dia muito especial!”
Então veio o ano novo e os votos de ano bom! E eu estava me propondo viver bem com a velhinha, já que exorcismo não se aplicava a ela. Fiz um ritual de batismo. Antes que alguém, como sugeriu minha psicóloga, resolvesse chamá-la de Raquel, ela deveria ter um nome. E escrevi esse texto abaixo que publiquei no meu facebook em 02/01/2013:
“O batizado de ALICE
Uma velhinha, germânica, com mais ou menos 90 anos, bem esclerosadinha se apossou do meu corpinho. Minha primeira reação foi exorcista "sai desse corpo que não te pertence!" ou qualquer coisa parecida. Mas ela é geniosa e está decidida ficar comigo… então resolvi medica-la pra ela ficar quietinha. Está funcionando… em partes… coloquei ela para subir as cachoeiras de Corupá e ela até foi, mas no outro dia me colocou de castigo… ela realmente é geniosa!
Já que vamos ter de conviver pra sempre resolvi fazer as pazes com ela em 2013! Entrei decidida dar um nome pra ela, gente geniosa gosta de ser tratada pelo nome… e esse negócio de eu chama-la de velha de 90 anos, velha esclerosada… uma injeção por dia… ela não gosta muito. Procurei um nome e depois de muito pensar eu decidi… nada mais justo ela se chamar o nome da minha bisavó germânica, já que a predisposição genética da Esclerose Múltipla vem de um DNA branco, ariano (Hitler nem imaginava que a Esclerose Múltipla vem da raça "pura"… ele teria matado o pesquisador… puro é DNA bichado).
Então, hoje foi o batizado da minha Esclerose Múltipla, essa velhinha que se apossou do meu corpinho ganhou o nome de ALICE.”
E depois desse ritual tudo começou a dar muito certo! Finalmente Alice ficou calma! Levei Alice para a Yoga, punha Alice para descansar sempre que precisava. Acolhi Alice, passei a conversar com ela. Gosto tanto de ouvir histórias, não é? Então colocava Alice para descansar e imaginava ouvir suas histórias, como seria se eu a encontrasse de verdade? Como seria seu rosto? Sua voz? E vinte minutos depois Alice dormia e eu podia voltar ao trabalho. Alice gostava de jazz, se acalmava… e enquanto percebia uma dissonância e outra, ela me dava conselhos. Foi quando entendi que tudo ficaria melhor se as exigências perfeccionistas não fossem tantas… talvez fosse isso que irritava Alice? Em 02/03/2012 escrevi sobre isso:
“Um bom jazz para fechar a semana… e para refletir a semana. Quantas exigências formais? Quantas tradições, certezas, simetrias convocadas, perfeições nas expectativas? E de repente o jazz nos mostra que está no “erro” a beleza da vida, a dissonância, o improviso, a quebra de tradição, as surpresas, a vida é dissonante e consertar seria estragá-la. Acho que o jazz poderia ser um estilo de vida…”
Mas, por outro caminho, eu organizava o que saía fora da ordem. Eu achava que estava dominando Alice. Tudo estava sob controle! Eu voltava a uma vida quase “normal”, com outro ritmo no trabalho, mas conseguia fazer o que tinha me proposto. Continuava buscando o normal! E então… Alice me surpreende com um novo surto, dessa vez auditivo! Ah! Alice, Alice… não me decepcione! E então experimentei a depressão! Perdi o chão! Experimentei novamente o “desamparo”, a sensação de descontrole da vida! Sou daquelas pessoas que gostam de colocar palavras no buraco sem fundo das emoções. Dar nome às coisas nos faz sentir donos delas… foi assim que nasceu Alice e é assim que sobrevivo… e preciso escrever para me salvar!
Nessa época, pensei em ouvir histórias de amigos de Alice. Afinal, pensei, sou historiadora, deve ter pessoas na cidade que queiram deixar suas vidas biografadas. Vou ouvir e escrever histórias de pacientes com EM. No Natal de 2013, da Associação de apoio aos pacientes com Esclerose Múltipla de Joinville e região, ARPEMJ, eu já havia socializado esse meu desejo e feito um convite mais ou menos informal. Mas depois do surto, da depressão, voltei de férias em 2014 com a certeza e um desejo imenso de colocar palavras nessa busca por mim mesma.
Assim nasceu um projeto de pesquisa que realizo na universidade onde trabalho – Universidade da Região de Joinville, Univille –, chamado “Memórias Múltiplas e Patrimônio Cultural em Rede: o registro (auto)biográfico diante da ameaça da perda”, com o qual tenho reconstruído minha vida na universidade, meus interesses, meu cotidiano e minha relação com Alice. Depois de ouvir algumas histórias de vida com EM consegui dizer em primeira pessoa “Eu sou paciente com EM”. As coisas não estão resolvidas… Alice ainda é uma terceira pessoa para os momentos mais difíceis. Uma outra de mim mesma!