Esses dias, conversando com a Bruna, falei: “ah! 2018 podia ser um ano ótimo, “dar certo”, sabe? Em que os grandes males sociais enfraquecessem e que eu pudesse pelo menos dar uma melhoradinha, ser menos dependente e causar menos incômodos”. Então, ela me falou algo que me marcou profundamente: “você já pensou que sua vida até aqui deu certo”?
Particularmente, estou bem esperançoso com 2018, mas desde esse dia tenho pensado bastante nisso. O ano começou e uma ideia fixa rondava minha cabeça: antes de pedir ou desejar qualquer coisa, tinha que agradecer. De fato, quem me vê fisicamente pode achar absurda essa percepção. Quem me acompanha mais de perto sabe que desde 2015 desci ladeira abaixo. Fiquei cada vez mais dependente e debilitado.
Hoje, preciso de uma cadeira motorizada para me movimentar pela casa, preciso de ajuda para fazer xixi, uso uma adaptação para comer e preciso que alguém corte as carnes. Viro na cama com dificuldades, meu equilíbrio está péssimo, meu lado esquerdo está travado, digitar um texto no note tornou-se um jogo de paciência, tendo que digitar com uma mão e catando milho etc.
Assim, parece insensatez falar que minha vida “deu certo” até aqui. No entanto, se não olhar o que perdi, posso dar mais ênfase no que ganhei desde então. Casei, compramos um apartamento ótimo, tive um filho, estou fazendo doutorado, fiz novos amigos e familiares, comecei e enfrentar de forma mais refletida a vida com EM.
Independente dos sintomas, dificuldades e frustrações que a Esclerose trouxe, devo agradecer as experiências e oportunidades que ela me deu. Desde o diagnóstico foi um constante fazer e refazer de identidades e desejos, que aprendi a viver e amar a mudança.; viver no presente e não ficar preso naquilo que fui e naquilo que gostaria de ser.
A situação atual está bem difícil, mas tendo a vê-la como uma espécie de treinamento, “um estágio existencial”, que durará o tempo que precisar. Não tenho que vencer uma batalha, mas aprender com ela. Quanto mais você precisa de ajuda, mais você reconhece e dá valor aos outros; mais domestica seus egos e vaidades e aprende na prática sobre humildade e dependência. Se perguntassem se preferia não ter EM ou ter e aprender com ela, ficaria com a segunda opção. Sou o que sou hoje por causa dela.
Todos caminham juntos, mas em tempos diferentes e com objetivos diferentes. A doença não é uma derrota, um erro no percurso que precisa ser superado e corrigido. Não há um caminho único e uma identidade única a se acomodar. Você não precisa de mestres que lhes mostrem “o” caminho e “a” verdade, mas sim de pessoas que lhe permitam continuar caminhando. Encontrar essas pessoas durante a sua jornada é um motivo de sorte. Por isso tenho muito a agradecer àquelas que me acompanham.
Obrigado a Bruna por fazer parte desse “treinamento”, por me fazer refletir e mudar, por me possibilitar essa experiência do casamento e da paternidade. Por cuidar tão bem do Francisco. Aliás, devo agradecer todos àqueles e àquelas que cuidam do Francisco. Sei que é um prazer, não uma obrigação, mas mesmo assim me sinto agradecido por isso, por proporcionar cuidados que infelizmente não posso oferecer.
Devo agradecer ao próprio Francisco; não só a oportunidade de ser seu pai, mas de aprender diariamente com ele. Observa-lo tem sido uma atitude interessante para o meu tratamento. Quando deixamos de fazer uma coisa, porque fazíamos facilmente por um certo jeito, desacostumamos a tentar de outras formas. É bom ver suas descobertas.
Devo agradecer aos familiares e amigos que desde o diagnóstico me auxiliaram com caronas, acompanhamentos, apoios, resolução de problemas etc. E, acima de tudo, por me olharem como igual, verem uma pessoa e não uma cadeira de rodas ou uma doença. Por não me fazerem sentir mal por precisar de ajuda.
Gostaria de agradecer em especial a minha mãe, que topou esse meu desejo de mudar para Porto Alegre e os aprendizados e risadas que demos nesses anos. Obrigado por acordar a noite e me levar o papagaio quando tenho vontade de fazer xixi em plena madrugada. Obrigado por me segurar ou me sentar quando me faltam força e equilíbrio. Por me acompanhar nos tratamentos e aulas.
Agradeço a todos os médicos, fisioterapeutas e outros terapeutas que fizeram parte da minha trajetória, me auxiliando a ter uma melhor qualidade de vida. Em especial, gostaria de agradecer o esforço e preocupação da minha neuro, Maria Cecília.
Gostaria também de agradecer a meu orientador atual e todas as pessoas que me auxiliam de alguma forma e me possibilitam cursar uma pós-graduação. Além disso, quero agradecer ao meu antigo orientador e os amigos do grupo de estudo que toparam essa maluquice de fazer reuniões à distância em vídeo conferência.
Por fim, gostaria de deixar o meu muito obrigado a coisas mais imateriais. Primeiro, às pessoas que desenvolvem softwares de tecnologias assistivas que me possibilitaram realizar trabalhos (como fichamentos, leituras) em tempos menores do que levaria nas condições atuais. Em segundo, a essa força, confiança, de que tudo vai dar certo (que aprendi com a Bruna). Com meu agnosticismo, não tento dar nomes ou racionalizar essas coisas, mas sentir isso me ajuda a confiar no próximo passo.
Enfim, obrigado a todos aqueles que me ajudaram com os obstáculos no caminho, me possibilitando a viver esse aprendizado e fazendo com que aos coisas dependessem, apesar das dificuldades, do meu esforço individual. A partir daqui, eu assumo.
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Esse texto dialoga muito com um outro que escrevi em 2015: Gratidão (#juntossomosmaisfortes). Quem se interessar recomendo muito a leitura.