Resumidamente, podemos dizer que um escravo seria aquele que não pensa por si próprio, cujas vontades e escolhas estão em poder de um outro, a quem obedece irrefletidamente. Com uma definição mais ampla e psicológica do termo, podemos ir além da condição física de cativeiro, das correntes, da supremacia da força, da violência e da inexistência de legalidade. Sendo possível jogar luz sobre nossas próprias ações.
A vida é uma constante repetição, que não nos permite parar para pensar. Como disse o escritor americano Ralph Waldo Emerson, “quando se patina sobre gelo fino a segurança está na velocidade”. Com um terreno tão instável, corre-se o tempo todo. Sempre tentando suprir uma possível falta ou evitar que algo falte a nós e àqueles próximos a nós. Interromper as demandas da vida significa ser tragado e afundar em mar desconhecido. Se pararmos, somos convidados a enfrentar nossas reais condições de vida; o que nem sempre é bem-vindo, pois a vida que levamos não é lá uma coisa a ser admirada. Dessa forma, eu lhe convido a parar um instante e escutar essa canção de Chico Buarque:
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Pronto! Se você parou, prestou atenção nos “versos desta canção inútil”, agora, podemos continuar!
Certa vez um amigo me disse: “o jeito mais fácil de fugir das responsabilidades é dizendo que tem responsabilidades”. Ouvi essa frase pela primeira vez anos atrás, mas confesso que só a partir de seu nascimento, Francisco, é que passei a vivenciá-la, de fato. Dizemos não posso fazer “x” porque preciso fazer “y”; não posso ir em “a” porque tenho um compromisso em “b” etc. Como se as escolhas não dependessem de nós; como se estivéssemos presos a obrigações externas e que nos são impostas.
Nessa atitude, o futuro sempre parece ser a redenção: ano que vem quando tiver mais tempo, depois que acabar a faculdade, quando me aposentar, quando tiver mais dinheiro etc. Desculpas, desculpas, desculpas… A vida se torna uma tentativa de justificar nossa ausência, como se não tivéssemos opção, como se não fossemos donos de nosso própio tempo. Nisso, deixamos de lado quem realmente importa ou mesmo as coisas que são necessárias e nos dão prazer no presente.
Ficamos presos a coisas, pessoas, identidades, funções, dinheiro; e nos tornamos escravos delas. Não temos a maleabilidade para seguir sem elas, pois são conhecidas e nos fornecem um porto seguro. O medo nos aprisiona. Por isso, muitas vezes buscamos a segurança da escravidão a uma vida de incertezas e liberdade. Muitas vezes, somos responsáveis por nossa própria submissão, em uma situação em que nos colocamos voluntariamente.
É comum ouvirmos afirmações como: sou uma pessoa melhor depois da doença! Mas, na verdade, uma enfermidade pouco tem a ver com isso. Olhar pra si, parar, fazer as coisas que gostamos, estar com as pessoas que amamos; tudo isso poderia ser feito sem a doença. O que aconteceu foi que a EM lhe libertou da escravidão. Não foi mais possível seguir o mesmo ritmo e foi necessário pensar mais em si. Às vezes, precisamos desse convide obrigatório para parar e ouvir nosso corpo dizendo: calma! Mais devagar, não consigo seguir nesse ritmo!
Hoje, meu corpo e minha mente têm prioridade. Assim, procuro ofertar aos outros o máximo de mim, tentando ser a melhor versão de mim mesmo. Oferecendo-os o que sou, não o que fui ou o que serei. E isso, me exige que esteja focado sempre no presente. Quando estou fazendo os exercícios, estou fazendo os exercícios; quando estou lendo, estou lendo; quando estou escrevendo, estou escrevendo; quando estou com vocês, Francisco, sua mãe ou alguém da família, estou com vocês.
Parece óbvio, mas não é! Antes, estava preso ao que tinha que fazer, em um futuro que ainda precisava ser conquistado. Ao fim do dia, não valorizava o que fiz, mas aquilo que havia deixado de fazer. Falam que a grama do vizinho sempre é mais verde, mas, no fundo, essa é uma escolha. Só é mais verde porque invejamos aquilo que não temos, o que nos falta, e não nos esforçamos pra deixar o nosso quintal um lugar melhor!
E isso não é aquele papo autoajuda, individualista e meritocrático do “você é responsável por sua vida e tem de solucionar sozinho os seus problemas”; ou “cuide do seu jardim e dane-se o resto”. Longe disso (acredito que somos sim responsáveis pelo outro). Não ser escravo das coisas, ser senhor de si, não quer dizer a ausência de dificuldades, mas saber como enfentrá-las. Às vezes, ao contrário, encontramos ainda mais dificuldades, pois uma atitude de enfrentamento é vista como insolência, desrespeito ou ingratidão; como se estivessem nos fazendo um favor.
Nos encontramos em uma estrutura escravizante. Dia a dia nos defrontamos com discursos, relações, medos etc., que procuram reforçar a dependência e nos submeter. Temos dificuldades financeiras, amorosas, pessoais etc., no entanto, independente delas, acredito que a rebelião é a única alternativa.
E nessa lógica que nos força a correr o tempo todo, parar já é um ato de resistência. Parar e pensar contra essa força que parece nos empurrar para frente sem o nosso controle, já é resistir. Francisco, eu não posso lhe garantir sempre a liberdade, mas posso lhe ensinar a ser livre mesmo nas dificuldades e nas derrotas. “Eles” querem o nosso corpo, para trabalhar como uma ferramenta descartável, mas entregar-lhes a alma vai ser sempre uma escolha.