Até hoje eu não sei quando essa vontade de percorrer o Caminho de Santiago chegou para mim, mas faz muito tempo que essa ideia me visita. Em 2015, eu decidi que a minha hora tinha chegado. Comuniquei às minhas filhas e pais que faria o Caminho Francês, de Santiago de Compostela e todos foram contra. Para falar a verdade, nem me deram muita atenção.
A minha primeira iniciativa foi pesquisar sobre o Caminho de Santiago e descobri que são muitos caminhos diferentes, a segunda decisão foi escolher que Caminho eu percorreria. Como foi a primeira vez, decidi fazer o Caminho Clássico, saindo de Saint Jean Pied de Port, no sudoeste da França – aproximadamente 800km andando, atravessando toda a Espanha, até chegar à Galícia. Decidido qual o caminho, comecei as buscas no Google por associações de peregrinos que dessem suporte antes e durante o percurso. Entrei em contato com algumas, pelo telefone – eu precisaria deslocar minha medicação, que na época era injetável. (Troquei a medicação injetável pelos comprimidos, três meses antes. Como facilitou a minha vida!). Decidi pela Associação Amigos do Caminho de Santiago e fui muito bem atendida pela Carol. Feito isso, entrei para um grupo deles de whatsapp e comecei a viver o caminho junto com muitos outros peregrinos que estavam caminhando e tantos outros que iriam caminhar. Ali, me dei conta de que eles seriam a minha base ao longo do meu Caminho, pois foi assim que nos comportávamos quando um amigo pegava o avião rumo à Madrid. Afiliada, eu tinha material de sobra para entender como planejar o roteiro e saber quanto eu precisaria disponibilizar por dia de caminhada, desde que saísse do Brasil.
Comecei a levantar o enxoval necessário para a viagem, passagem aérea, a planejar financeiramente. Tudo estava se materializando. Iniciei meus treinos com um personal e fazia caminhadas diárias com ou sem chuva. Decidi viajar no Outono, pisando no Caminho no dia do meu aniversário de 50 anos. Mas a vida não tem controle. Principalmente quando se convive com Esclerose Múltipla. Quando as minhas filhas se deram conta de que era real, resolveram abraçar meu sonho para torna-lo realidade. A única condição imposta pela minha mais velha foi que eu estivesse um ano sem abrir surto, antes de começar a peregrinação. E eu topei. E fracassei. A EM é imprevisível. Ela chegou novamente, em abril de 2016. Foi então, que em uma conversa com a minha filha Lorena, em uma das noites de internação na Policlínica de Botafogo, no Rio de Janeiro, com a vista mais deslumbrante que poderíamos apreciar (de um lado o Cristo Redentor e do outro a baía de Guanabara, sob uma lua mágica), que a fiz entender da necessidade que eu tinha de quebrar aquela promessa. E ela entendeu. Junto comigo, apoiou cada momento que estava por vir. Não fui em setembro daquele ano, seria desumano para mim, os efeitos da pulso são bem agressivos. Eu precisaria estar fisicamente bem preparada para encarar aquela jornada. Não esperei e comprei logo as passagens. Quando isso aconteceu eu sabia que nada mais me deteria. O universo estaria totalmente junto comigo, facilitando para que tudo desse certo. Só que fui “testada” mais duas vezes: sofri um acidente de bicicleta no fim de novembro de 2016 e quebrei um dedo do pé em janeiro de 2017. De onde eu tirei forças eu não sei, mas consegui driblar tudo! 30 de março de 2017, no dia do aniversário da minha Lorena e do meu irmão caçula Marcelo, eu embarquei rumo à Madrid.
Destaco agora alguns episódios que vivi nessa peregrinação e o que aprendi com cada um deles:
Travessia dos Pirineus. Fiz em 32 km, um percurso que seria de 28. Eu e uma amiga peregrina, saímos juntas do albergue e chegamos juntas em Roncesvalle (Graças a Deus, por isso). Nós nos perdemos duas vezes, chovia e nós estávamos tão deslumbradas com tudo que parecíamos duas adolescentes saindo pela primeira vez à noite. Mais ou menos no meio dos Pirineus eu fui entrando em exaustão. Juro que eu tinha certeza que viraria uma daquelas cruzes do caminho. Pensei: “vou morrer logo de cara.” Tinha até aposta rolando na família de que minha filha teria que ir me resgatar lá – só que viva, é claro! Eu sabia que faltava muito ainda. Estava com pedômetro ativado. Gritei minha amiga que estava na frente e disse: “Cleo, segue que eu ficarei por aqui. Dormirei aqui na mata e assim que o dia amanhecer eu continuo”. Ela disse: “De jeito nenhum. Se você ficar eu fico também. Se você está exausta eu estou morrendo de fome.” Eu dei meus chocolates todos para ela e disse: “se você vai ficar eu não sei, eu sei que eu ficarei”. Descemos um barranquinho e eu logo abri meu saco de dormir. Foi menos de 10 minutos de sono. Passou uma peregrina gritando para nos levantarmos e seguirmos viagem. Demos um pulo como se tivéssemos dormido 8 horas. Eu me revitalizei com aqueles benditos 10 minutos. Fomos até o fim. Quando avistei o mosteiro caí ajoelhada no chão e todas se ajoelharam junto comigo.
Cheganto ao Mosteiro, um homem veio na minha direção correndo e agarrou minha mochila dizendo: “venha peregrina, você venceu essa etapa, agora precisa descansar.”
Lição: Quando tudo parecer impossível, se você não morreu, você vai transformar aquela realidade. E vai ser lindo como um milagre.
Dia seguinte, eu mal andava, mas comecei a caminhada às 8h da manhã.
Morro do Perdão. Passei a fazer as caminhadas ouvindo música e cantando. Subi o morro com certa facilidade e me deparei com a imagem dos peregrinos em bronze – é uma das cerejas do caminho. Já no fim da descida, vem minha outra amiga peregrina, Myrta, chorando cântaros. Eu também chorava, mas nem sabia por quê. Ela se agarrou em mim num abraço e disse: “Amiga, não falo com minha mãe desde a adolescência. Sabes quem acabou de me ligar?” Pois é gente, a mãe dela ligou nesse exato momento da passagem pelo “Morro do Perdão”.
Lição: Nunca deixe de pedir perdão à alguém que é muito importante para você. O perdão é milagroso.
Tosantos. Um albergue paroquial, fundado por São Francisco de Assis. Em Albergues paroquiais você decide quanto vai pagar e se vai pagar. Tem uma caixinha para donativo onde você pode colocar o donativo ou retirar se precisar. Todos que ali param fazem donativos. No albergue eu ajudei a fazer e a servir o sopão do peregrino, no jantar. Dormi no chão, em um colchonete fininho, em um dia super frio e participei da missa peregrina, onde tive o privilégio de ler um trecho do evangelho em português para peregrinos do mundo todo.
Lição: Confie e agradeça. Faça o que puder para ajudar ao próximo. De alguma forma, isso reflete em nós. Desfrute da presença do outro mesmo que você não saiba quem é. O inesperado pode ser um grande milagre.
Molinaseca. Um lugar de tantos lugares. É belíssimo! Tem albergue brasileiro com acolhimento brasileiro! Tem um rio enorme e lindo que é a atração da cidade.
Lição: Fora de casa por muitos dias, caminhando todos os dias, a saudade das pessoas e dos animais de estimação aperta muito, mas eu, em especial, senti muita falta da minha comidinha do dia a dia: arroz com feijão. No Refúgio San Nicolás eu fui recebida com tanto carinho que me senti em casa. Acolhimento faz milagres!
Portomarin. No meio do nada, há 8 km de Portomarin, sem um ser humano por perto, eu tive a maior crise de fadiga da minha vida. Cai e não tinha força nem para levar o apito à boca (eu andava com um apito pendurado no pescoço). Apareceu uma Holandesa que chamou o marido e me levaram para dentro da casa deles. Ela queria chamar um médico e eu disse que não precisava, eu sabia o que estava acontecendo comigo. Precisava apenas ficar deitada. Perguntei se ela poderia chamar um taxi para me levar para Portomarín. Pelas minhas contas faltava apenas 8km. Ela e o marido me colocaram dentro do carro deles e me levaram até o hostel. No meio do caminho encontramos minhas duas amigas: Myrta e Cleo, que vieram junto conosco.
Lição: O meu maior medo era envelhecer sozinha e não ter ninguém para cuidar e que cuidasse de mim. Hoje sei que ninguém nunca está totalmente sozinho. Ao longo desse percurso até aqui eu aprendi a desfrutar imensamente da minha companhia e descobri que eu posso ser a minha maior algoz se eu não me proteger. É fundamental saber ouvir o corpo e dar-lhe a devida atenção e confiança. Feito isso, tudo flui. E esse foi, além do meu maior aprendizado do caminho, o maior milagre que vivi ali.
Eu fui para essa viagem sozinha. Tive duas companheiras de albergues: Myrta e Cléo. Myrta é de Porto de Alegre e Cleo é de São Paulo. Hoje elas fazem parte da minha vida. Estiveram comigo nos meus momentos mais difíceis a minha neurologista, Dra. Fabíola Rachid Malfetano e a minha ortopedista e amiga Dra. Ana Claudia Souza. Sem elas eu não teria chegado até o fim. Fiz fascite plantar nos dois pés, minha visão embaçou e ficou dupla duas vezes e tive três crises de fadiga bem fortes, que me deixaram de molho, inclusive. Em quase todos os momentos eu lembrei dos amigos da AME, do quanto eu queria que alguns deles estivessem ali, comigo!
Só digo uma coisa: valeu tanto que quero levar mulheres que estejam interessadas em refletir sobre a sua existência, no meu próximo caminho e ainda trabalhar o livro: “Mulheres que correm com os lobos”, ao longo do percurso. Que tal juntar-se a mim? Essa será uma grande viagem… Em todos os sentidos, mas principalmente, para dentro de si. Por enquanto é só uma ideia que está se materializando aos poucos…