O diagnóstico é um momento de ruptura radical. Marca duas experiências diferentes em relação ao corpo e ao tempo. O primeiro porque revela uma mudança que está acompanhada a limitações ou a uma profunda reflexão sobre seus hábitos de vida. Somos chamados a adicionar um novo elemento à nossa identidade: além do time que torcemos, profissão, sexo, nos afirmamos como tendo uma doença. Independente de sua evolução (branda ou severa), se apresenta sob uma condição que nos exige cuidados e que exigirá uma atenção especial ao longo da vida.
E, por ser uma ruptura, se mostra como uma descontinuidade no fluxo do tempo: antes e depois. Por isso, somos obrigados a nos distanciarmos das memórias do que éramos no passado e a repensar nossas expectativas e planos futuros. O que, às vezes, nos convida a novas escolhas; da vida profissional aos convívios sociais e de amizade. Nem sempre é possível optar e agir da mesma forma que antes.
Uma das coisas mais difíceis enfrentadas pelos recém-diagnosticados é lidar com essa diferença, não desejada, mas inevitável. Comparações com o que se era e o que se fazia antes são comuns. E assim como temos que aprender essa nova identidade, nossos amigos antigos também estão aprendendo. Impaciência não ajuda nessa situação. Não adianta ser intolerante com aqueles que querem ajudar e não sabem por seu desconhecimento. Nesse caso uma postura mais didática talvez seja a melhor para ambos: um lado se mostra disposto a ensinar e o outro disposto a aprender. Perguntas “como eu posso te ajudar?”, “do que você precisa?” ou afirmações do tipo “se precisar, estou aqui”, são sempre bem-vindas.
De alguma forma, a EM lhe força a (re)pensar suas relações. Nesse sentido, acredito que há 4 tipos de postura que podem nos ajudar nesses laços; sobre aqueles que te conheceram antes do diagnóstico e aqueles que te conheceram depois:
Antes do diagnóstico
Afastamento: infelizmente há pessoas que se afastam. Sinceramente, não culpo ou tenho qualquer pesar nesse distanciamento. Acho natural. Relações são contextuais. Assim como existem amizades que duram décadas, independente do tempo e distância, há aquelas que se limitam a locais e circunstâncias específicas. Não é porque uma pessoa conviveu com você no passado que ela continuará sendo sua amiga no presente. Certamente, alguns amigos de infância ou que me ampararam em momentos difíceis, hoje em dia sequer fariam parte do meu ciclo de amizades. Independente da EM, eu mudei. A identidade é muito mais do que isso. São necessários muitos outros elementos em comum para criar laços de amizade. Há aqueles que se afastam não pela doença em si, mas pelas escolhas que essa nos levou a fazer. Nesse caso, talvez o sentimento se encontre mais nas atividades compartilhadas do que entre as pessoas envolvidas com aquela tarefa. A partir do momento que tais coisas não podem continuar (esportes, baladas, bebedeiras etc.) simplesmente se afastam.
Torcedores: O outro extremo são aqueles que vivenciaram com você o diagnóstico, torcem por suas conquistas e lamentam seus fracassos, seja na vida com EM ou no âmbito profissional, amoroso, financeiro etc. Mesmo distantes estão presentes. Querem sua companhia independente da situação. Quando não vão à sua casa lhe visitar, para algo especial ou simplesmente para jogar conversa fora, estão preocupados com as questões de acessibilidade que você necessitará nos lugares externos: banheiros, escadas, distâncias, restrições alimentares etc. Esse tipo de amigo, embora tenha lhe conhecido antes do diagnóstico, consegue perceber a diferença e as adaptações necessárias nas atuais circunstâncias. No entanto, esse esforço não é unilateral. Não é porque as condições não são ideais que vamos negar a companhia. É como convidar um vegetariano para um churrasco: você sabe que ele não está ali por causa da carne, então deve ser pela companhia, pela festa. O mesmo se dá conosco. Às vezes, vale à pena enfrentar fadiga, falta do sono ou lances de escada; pagar o preço, as dores, as dificuldades para se estar junto a amigos queridos.
Depois do diagnóstico
Novos contatos, novas identidades: Assumir um diagnóstico publicamente é também assumir uma nova identidade. A partir do momento em que dizemos: “tenho EM”; é possível esperar outras atitudes das pessoas à nossa volta. Sem isso, fica difícil. Essa é uma daquelas situações em que uma diferença precisa ser explicitada para que condições que possibilitem a igualdade sejam buscadas. A partir dessa revelação, a diferença pode passar por uma característica indiferente. É um encontro como qualquer outro, em que as características do indivíduo são dadas como um fato; sem grandes possibilidades de preferência ou moralização. Quando conhecemos outras pessoas, pouco importa sua cor de pele, opção sexual, formato do nariz, tipo de voz, de cabelo ou se tem uma doença ou não etc. É algo dado, assimilado naturalmente. Ou, pelo menos, acredito, deveria ser.
Esclerosados: É maravilhoso encontrar outras pessoas com Esclerose Múltipla; pessoas que compartilham o mesmo diagnóstico e passam pelas mesmas experiências. É fantástico quando outro consegue entender perfeitamente bem quando descrevemos uma fadiga ou formigamento. Esse contato pode se dar pela internet ou pessoalmente, via blog ou associação. Às vezes, precisamos só ouvir o que o outro que já passou por aquilo tem a dizer; seja paciente, mãe, cônjuge, amigo etc. de uma pessoa com Esclerose. A internet e as redes sociais me proporcionaram amigos incríveis e até casamento, laços fortes e que vão além da tela, com contatos de carne e osso, e, ao mesmo tempo, permitiram que pessoas distantes (amigos anteriores ao diagnóstico) se mantivessem presentes mesmo com as distâncias e minhas impossibilidades de um contato presencial. Todavia, há de se lembrar: o diagnóstico não é elemento suficiente para consolidar uma amizade ou qualquer relacionamento. O mesmo CID não justifica uma proximidade quando diversos elementos parecem afastar sujeitos distintos com EM. É preciso muito mais do que isso.
O diagnóstico de Esclerose Múltipla pode lhe impor mudanças, adaptações e limitações. No entanto, não pode ser considerado o culpado por nossas amizades. Tanto nós, como nossos amigos, somos responsáveis por nossas escolhas. Podemos escolher sermos amargos e intolerantes ou agradáveis e gratos. Igualmente nossos amigos podem escolher se afastar ou estar presentes. Se o diagnóstico veio sem requisição, a atitude que teremos frente a um fato está em nossas mãos. E por serem escolhas, a amizade está muito além do diagnóstico. Reflete-se em escolhas conscientes, quem queremos do lado e quem não e que estão para além de qualquer similitude identitária.