Somos ensinados que o presente é um mero instante. Apenas um momento desimportante que se desfaz rapidamente entre o futuro e o passado. No entanto, ao contrário, o presente é tudo o que temos. É a única ocasião disponível à ação, em que podemos fazer alguma coisa em nossa vida e na vida dos outros.
Mas nem sempre pensei assim. É, Francisco, papai estava geralmente preso à expectativa de um futuro que procurava antecipar, tentando projetar e planejar cada passo a dar. Tudo aquilo que estava fora da programação era visto como algo que atrapalhava o caminho traçado anteriormente. Na outra ponta, pensava nas vivências de um passado que via com saudosismo, um tempo que havia passado e não voltaria mais. Estava terminado, acessível apenas em recordações.
Isso, muitas vezes, gerou situações engraçadas, outras nem tanto. No entanto, ter uma doença crônica, como a EM, nos joga obrigatoriamente no presente. Há um encurtamento entre nossas experiências e expectativas; o que pode ser benéfico em algum sentido. Ao menos, é pedagógico, pois nos ensina a viver obrigatoriamente no presente. E isso, independente da doença, é algo que quero lhe ensinar.
Não podemos ter como referência nem o que passou, nem aquilo que planejamos. O diagnóstico é uma ruptura radical nessa percepção. Não adianta ficarmos presos a quem éramos ou no que fazíamos, nem perceber a doença como uma falha que nos atrapalha em atingir aquilo que imaginamos ser no futuro. Sob essa perspectiva, a existência se torna uma busca por desculpas para explicar o que deu errado. Olhamos para o ideal frustrado, lamentando as pedras no caminho e deixamos de lado o que podemos fazer agora, para resolver e ultrapassarmos os imprevistos no caminho.
Desta forma, o presente ganha grande relevância. Não é vivido com irresponsabilidade, como se o futuro e os outros não interessassem, como se o mundo fosse acabar amanhã e nada mais importasse, mas sim de forma consciente. Os tempos se unem, estão ligados, em relação, mudando continuamente. Um afeta e refaz a percepção do outro. Passado, presente e futuro não são tempos consecutivos e que podem ser superados, mas simultâneos e ainda existentes. O passado aparece compondo aquilo que somos e influenciando nossas escolhas e o futuro enquanto ideal e combustível para o presente. Eu sou aquilo que fui e já sou aquilo que serei (ou pelo menos desejo ser). Ou seja, a vida não é um progresso certo que vai de um lugar ao outro, mas esta permeada por experiências acumuladas, expectativas e desejos.
O futuro não é visto como uma promessa, uma relação de causa e efeito, algo que dependa só de um cálculo racional e do planejamento pessoal, mas se apresenta enquanto possibilidade. Dar “errado” é tão possível quanto dar “certo”. E isso não é um outro caminho, um caminho errado ou alternativo, mas o mesmo caminho, o único que temos, vivenciado Äe forma diferente daquela que esperamos. Com um futuro tão incerto assim, como a evolução de uma doença, só nos sobra o presente. Pode ser que a EM me deixe ainda pior do que estou agora, pode ser que não, mas isso não tenho como controlar. Minha responsabilidade é com o presente: com o pai, marido e filho que sou hoje e com os cuidados que a EM me exige.
No entanto, não é o caso de dar mais valor às coisas do que elas têm de fato. A vida não é uma barganha, em que se busca obter o prêmio pelo esforço no presente. O presente assim como é tudo que temos é também um momento fugidio. Toda privação atual parece ser irrelevante ao longo da existência. Há outros presentes a viver e é improdutivo ficar preso a uma dificuldade ou situação do passado, pois superada, essa se acumula a outros escombros, que têm pouca relevância ao longo da vida.
Por mais difícil que seja uma situação no presente, ela passa. Isso não quer dizer que não haverão dificuldades ou sofrimentos, mas que ao longo de uma vida, essas situações são pasageiras, insignificantes a ponto de não fazerem sentido em nossas escolhas futuras ou tão importantes que marcam profundamente a nossa identidade, continuando vivas em nosso presente – mas passageiras. Se for para chorar, chore, se for para sofrer, sofra, se for para rir, ria; é isso que o presente lhe exige. No entanto, outros presentes e outras pessoas lhe demandam cuidados e atenção. É sobre eles que você tem responsabilidades e deve prestar contas. Essa, Francisco, foi uma das lições que aprendi com a Esclerose, com a sua mãe e com você, no casamento e na paternidade, temperadas com retoques pessoais de um historiador. Nessa mistura, acho que poderemos lhe ensinar alguma coisa.