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De certa forma, ter e assumir uma doença leva à diluição de qualquer expectativa de gênero. Lógico, que em certas enfermidades você nem precisa se dar o trabalho de uma reflexão mais profunda. Como em uma febre ou gripe, o mal tem começo, meio e fim. Ele vai e sua identidade permanece intacta, sem a necessidade de uma profunda reformulação de sua personalidade. No entanto, será que o mesmo é possível em uma condição que exige cuidados constantes, como a EM?

Será que seriam menos dignos de seus sexos e seus gêneros aquelas pessoas que não cumprem exatamente os papéis ou não possuem tais características socialmente pré-concebidas? Será que certas distinções biológicas perceptíveis são suficientes para condicionar e impor comportamentos? Masculino e feminino são, de fato, definidos pelo corpo ou são construções sociais? Pessoalmente, tenho calafrios com frases que se iniciam com  “homem que é homem faz…” ou “uma mulher de verdade…”. Dia 08 passou e infelizmente continuamos lendo repetidamente sentenças que procuram definir atitudes e posturas que dariam às mulheres a pretensa cidadania do universo feminino.

Indo mais pontualmente para a Esclerose Múltipla, assim que recebemos o diagnóstico – às vezes antes mesmo dele – somos intimados a enfrentar mais claramente essas questões. As mulheres precisam (re)pensar sobre salto alto, maquiagem, serviços domésticos etc. Será que certas coisas ditas do “universo feminino” realmente definem esse ambiente? Um salto alto é ícone de feminilidade se lhe falta equilíbrio ou passar maquiagem sem motricidade fina? Cozinhar é “função” das mulheres mesmo ocasionando fortes dores nas costas? Caso deixe de fazer essas coisas será menos mulher por isso?

E aos homens? Subir em escadas para trocar lâmpada é ainda dever se lhe falta equilíbrio? Ou ainda são os responsáveis por furar paredes quando lhes falta força? Levar as sacolas de compras é sua função mesmo andando mal? No sexo, são menores tendo que lidar com situações como disfunções, dores no corpo, fadigas? Devemos, tanto homens quanto mulheres, ficar escravos de um imperativo que conclama ao ideal de performance?

Elasticidade, força, resistência, sensibilidade, inteligência, capricho, organização etc., são características de indivíduos, não atributos específicos a esse ou aquele gênero. Há uma divisão sobre cores de menino e cores de menina; brinquedos de menino e brinquedos de menina. Ou ainda, há trabalhos que são considerados de homens e outros de mulheres. Mas será que essa distinção existe mesmo ou se deve a um discurso social? A biologia justifica e legitima a hierarquia e a organização social?

Eu posso até me vestir de azul, para me sentir mais “hominho”, mas isso não será suficiente para que eu tenha força ou equilíbrio para realizar serviços que são considerados como função masculina. Às vezes, me contento a observar de longe as mulheres que me rodeiam assumindo a frente e executando certas tarefas. Tenho que concordar, são muito mais fortes, equilibradas e aptas do que eu.

Lembro que quando eu e a Bruna estávamos pensando em casar e eu me mudar para Porto Alegre lhe disse em uma mensagem por whatsapp ou skype: “Viu, eu não serei aquele marido faz tudo, que sobe em escada, fura parede etc. Espero que você não almeje algo assim”. No que ela me respondeu: “E nem eu serei aquela esposa que faz faxina pesada”. Lógico que nenhum dos dois esperava que o outro cumprisse essa função, mas a brincadeira ilustra bem essa desconstrução…

Confesso que antes sentia muita culpa por não poder ajudar, por não estar exercendo o meu “papel”. Esse papel, no entanto, pode ganhar o peso de uma folha de aço sobre as costas. Foi libertador quando me despi dessa mentalidade sobre o que era função de meu sexo e passei a enxergar a questão por uma lente mais individual. Aquilo que eu, enquanto pessoa, não enquanto gênero, podia fazer e esperar.

Aconselho todos a fazer o mesmo, tendo ou não uma doença. Para mim, foi libertador. Nesse texto, fiz muitas perguntas, mas não respondi nenhuma. São todas retóricas… Se você leu até aqui já deve ter sacado a minha posição. A esclerose já nos obriga a uma reinvenção permanente e é mais saudável quando conduzimos esse processo a partir de nossas experiências e das possibilidades disponíveis ao nosso corpo, sem se frustrar por não se adequar a uma representação social do que é ser homem ou do que é ser mulher.

 

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