Sobre gente e sobre afeto

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Certas lembranças tocam bem lá no fundo do coração. Fazem ele bater um pouco mais acelerado, dão frio no estômago e o olhar fica parado. A gente respira fundo. Não se pergunta mais sobre o por quê: é a vida, ela é assim, é o que a torna bela. A gente sabe que ficou mais forte, muito mais forte do que poderia imaginar. Como diz o ditado: o que não nos mata… Ah… O que não nos mata, nos torna mais fortes. Não ficamos melhores nem piores.  Defeitos e qualidades continuam lá, a fazer parte de nós.  Uns deram lugar a outros, é verdade. Mudam, metamorfoseiam-se. Mas, decididamente, não nos tornamos melhores nem piores. Apenas vamos aprendendo e queremos mais leveza. Não adianta acumular: nem riqueza, nem stress, nem mágoa, nem horas de trabalho, nem sapatos… Não adianta tanto querer agradar: nem aos amigos, nem aos menos amigos, nem ao chefe, nem à familia… No fim das contas, nos resta pouco. E esse pouco é o essencial.

Ela tocou a campanhia. Chegou com uvas, sopa e um abraço. No seu olhar, compreeensão. Nas suas palavras, a outra podia encontrar a coragem que quase lhe faltava. Ligava toda manhã pra ver se a amiga tinha comido. Não tinha. Ela lembrava do bebê que a outra carregava. Precisava comer. Uma palavra doce. O telefone desligado, a mãe tinha fome pela primeira vez no dia. E comia uvas e tomava sopa. Foi assim por três dias. 

Ela tomou conta da sua filha. Preparou-lhe comida, penteou-lhe os cabelos, a pôs pra dormir. Numa língua estrangeira, rezou pelo filho da outra no hospital. Em seus olhos, em suas mãos a doçura do carinho.

Ela esqueceu mal-entendidos. Chegou pra abraçar a amiga e chorar com ela. Não sabia rezar, mas rezou com seus próprios filhos pela criança no hospital. E, de novo, elas puderam sorrir.

Ele saiu do trabalho e foi ver o amigo com o filho no hospital. Mais tarde, pegou a menina na escola. Certamente a fez rir, como é do seu costume.  E não deixou que nem uma nuvenzinha de preocupação passasse pela fronte da menininha – ainda inocente sobre a tempestade que acabara de se formar. 

Eles nao acreditaram. Eram pais também, estavam longe da familia do mesmo modo, em outro país… Os olhos rasos de lágrimas, eles estariam lá pra muita coisa, estariam pra o amigo, se este precisasse. O pai sentiu essa força, esse afeto e voltou pra casa de um jeito diferente.

Ela dobrou suas roupas, varreu sua casa, limpou os móveis. Sorriu com a outra. A mãe, barrigão apontando pra frente, meio anestesiada, meio feliz (seu filho voltaria pra casa pro natal!) trabalhava no computador, andava pela casa, telefonava, não parava de falar. 

Ele se perguntou: porque não eu? Por que esse menino que eu conheci pequeno, cheio de planos, de sonhos pro futuro, por que nao eu, Senhor? E ficou sempre por perto. Com seu abraço, seus beijos, seus vinhos e histórias.

Alguns ficaram mesmo por perto. Outros não souberam o que dizer. Outros foram embora, ninguém nunca soube porquê. Houve suposições: talvez não quisessem ouvir falar de doenças, de lamentacões, de vitimizações. Ou talvez não fosse nada disso. Somente o tempo adormecendo as relações.

Outros nem souberam. 

Poucos enfrentaram o trânsito enquanto outros não perderam tempo.

Alguns sentiram muita dor. E muitos foram os que rezaram. 

Eis as flores de amor tardias para todos os que aqui se reconhecerão e que tanto amor souberam dar. 

 

 

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