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 As mulheres já nascem estigmatizadas. Serão mães um dia, serão esposas, serão mocinhas comportadas, prendadas.  Crescem aprendendo a servir, a serem submissas, a serem cuidadoras. 

 

 

Vou pedir licença para um texto longo, um desabafo de uma vida, em honra ao dia Internacional da Mulher.

Minha mãe nasceu nos anos 40, numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, terceira de 7 irmãos. Estudou até a 4ª série, porque segundo meu avô, mulheres não precisavam ser instruídas. Trabalhava em casa, lavando as roupas dos irmãos que trabalhavam em oficina, roupas sempre sujas de graxa. Esfregava o chão e tudo mais que precisasse ser feito. Menina ainda, foi morar com uma tia que lhe exigia menos, e ao completar a maioridade, foi embora pra outra cidade pra aprender uma profissão. Não queria ser como a sua mãe, uma escrava da casa, do marido, dos filhos. Tornou-se auxiliar de enfermagem e foi com essa profissão que criou seus três filhos, comprou casa própria e construiu uma vida. Apesar de meu pai ser presente e também trabalhar, minha mãe é que sempre foi “o homem da casa.”

Ser mulher na juventude da minha mãe, era abdicar de sua vida para cuidar do marido, dos filhos e da casa. Era abdicar dos seus sonhos em nome da família. Era parar de estudar pra ajudar a cuidar dos irmãos mais novos, ajudar com o serviço da casa, aprender a cozinhar, bordar, costurar. Minha mãe fez tudo isso, aprendeu todas as prendas e mais algumas. E ainda voltou a estudar carregando a filha consigo, à noite, depois de uma jornada dura de trabalho.

Apesar de ser uma mulher a frente do seu tempo, já que as mulheres da geração dela raramente trabalhavam fora, ela trouxe com ela muitos ranços de uma educação machista. Quando eu nasci,  ela só queria que minha vida fosse melhor que a dela, então me encheu de mimos, me enfeitava como uma boneca e me instruía para ser uma mocinha. Não a culpo por isso, sei que para a época ela fez o que acreditava ser o melhor para sua filhinha.

Mas eu odiava ser uma menina. Ser menina significava não poder subir em árvore, não jogar bola ou brincar de carrinho. Meninas devem se sentar com cuidado, pernas cruzadas para não mostrar as calcinhas, usar vestidos (ô roupinha FDP pra uma criança brincar!), não sentar no chão, não se sujar, não andar descalça porque quando ficar mocinha terá cólicas. Ser menina era muito chato! Os meninos é que eram felizes e podiam fazer qualquer coisa.

Aprendi a lavar a louça subindo num banquinho para ficar na altura da pia. Como os tempos eram outros, ia na padaria sozinha aos 5 anos, arrastando uma sacola pelo chão porque mal tinha força para carregá-la, o dinheiro posto numa bolsinha com um bilhetinho do que eu deveria trazer, nem sabia fazer troco, ou ler. E minha mãe não fazia isso comigo por maldade, por exploração ou por ser irresponsável. Eu até gostava da tarefa e aprendi desde cedo o valor do trabalho.

Se minha mãe me cuidava como se eu fosse um bibelô, ao mesmo tempo me ensinou que trabalhar, ter uma profissão, seu próprio dinheiro é sinônimo de liberdade. “Nunca dependa de homem, minha filha!”, aprendi desde pequena.

Quando fiz 8 anos, ganhei um irmão. Eu queria muito e rezava pedindo um irmãozinho, tanto que logo ganhei mais um, um ano e meio  depois. Adorava cuidar deles, trocar fraldas, dar banho, brincar com eles. Fazia parte do meu “treinamento para ser mãe”.  Mas eles cresceram e minhas obrigações também.  Minha mãe trabalhava fora, então eu ajudava a cuidar deles, mesmo minha mãe pagando uma “creche”, eu ficava junto e na verdade era eu quem cuidava deles.

Quando eles ficaram maiores e questionei minha mãe do porque eles ainda não lavavam a louça já que eram mais velhos do que eu quando comecei a ajudar com as tarefas de casa, a resposta foi: – porque eles são homens. Aí eu comecei a perceber que ser mulher era um fardo do qual eu não me livraria.

Ser uma menina crescida era nunca poder estar sozinha, porque era ´perigoso, enquanto aos meninos toda liberdade era permitida.  Era ter seu peito e sua bunda apalpada, quando você sequer entendia o porquê, pelos meninos, por um tio ou professor, porque você usava roupa curta e deveria estar querendo. Era ter algum desconhecido se esfregando em você no ônibus e você nem conseguir pedir ajuda de tão aterrorizada e envergonhada que estava.  Porque você certamente seria culpada por ele fazer isso.

Ser mulher é ter que ouvir dos médicos que deveriam te cuidar, que “na hora de fazer não doeu e nem chamou ninguém pra ajudar” quando você, aos 17 anos, assustada e sozinha, implora por assistência porque seu bebê está nascendo mesmo que o médico tenha dito que iria demorar horas.

Ser mulher é, numa entrevista de emprego, não ser questionada sobre sua competência ou conhecimento, mas sobre quem vai ficar com seu filho ou quem cuidará dele se ficar doente pra que você não falte ao trabalho. É ser vista como um estorvo para o empregador quando anuncia uma gravidez.

Ser mulher é receber um salário menor do que aquele seu colega homem só porque você é mulher. É ter todas as suas reinvindicações reduzidas à “histeria de TPM” e não ser nunca levada à sério.

Ser mulher é ser ignorada pelos garçons num restaurante que dirigem-se somente aos homens, como se você não fosse capaz de escolher o que vai comer.

Ser mulher é ficar sozinha num hospital público, internada precisando de ajuda, porque não se permite acompanhante homem numa ala feminina, enquanto que na ala masculina está repleto de mulheres cuidando dos seus maridos, pais, irmãos e filhos. É ficar ao lado do marido porque ele está doente e precisa de ajuda, mas ser normalmente abandonada por esse mesmo homem quando é ela que precisa de cuidados. É ficar sozinha cuidando dos filhos, principalmente dos que precisam de cuidados especiais, porque o homem não tem coragem de enfrentar tal situação.

Aprendi a gostar de ser mulher ao me tornar mãe. Minha feminilidade nunca foi tão forte, minha força nunca foi tão palpável do que quando me tornei mãe. Quis o destino que eu tivesse além do meu menino, quatro filhas mulheres. E foi por elas que fui aos poucos me reconhecendo feminista. Como já dizia Simone de Beauvoir, Ninguém nasce mulher, torna-se. Me tornei mulher aos poucos, um pouco mais a cada filha. Ainda tenho meus ranços de uma educação machista, vivo numa cidade pequena, conservadora e machista, mas tento aprender mais sobre meus direitos a cada dia para ensinar às minhas filhas a serem melhores que eu.

E assim a gente segue o ciclo. Minha mãe quis ser diferente da mãe dela, me educou de maneira diferente da dela e eu educo minhas filhas de maneira diferente também, para que a cada geração elas sejam mais conscientes dos seus direitos. Sejam donas da sua vida, dos seus corpos, da sua vontade e não sejam punidas apenas por serem mulheres.

Enfim, nós mulheres temos o poder da criação, só nós podemos gerar outro ser humano e alimentá-lo com o nosso corpo. E isso nos dá o poder até de decidir não fazê-lo!

Como eu já disse, apesar de sempre ter achado um absurdo certas coisas, só aos poucos fui aprendendo que elas eram realmente absurdas e que eu não sou obrigada a aceitá-las. Me perdoem as feministas “de carteirinha”, aquelas mais esclarecidas do que eu, se meu texto ainda reproduz discurso machista, ainda estou aprendendo e aceito de bom grado qualquer crítica nesse sentido, afinal ainda tenho 3 das minhas 4 filhas crescendo e aprendendo sobre as alegrias e as dores de ser mulher.

Se nos falta muito para celebrarmos o fato de termos nascido mulheres, vamos comemorar o fato de que a cada dia mais e mais mulheres estão se tornando cientes dos seus direitos, aprendendo a reconhecer relações abusivas, gritando a plenos pulmões para denunciar, para reivindicar, para exigir.

Feliz dia internacional da mulher!

 

Foto: Eu e minha mãe Neura, exemplo de mulher. Arquivo pessoal

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