Compartilhe este post

Compartilhar no facebook
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no twitter

Adoro São Paulo. Essa cidade já me proporcionou muitas alegrias, conhecimento e diversões. Sua estrutura certamente é incrível: de transporte, de oportunidades, de livrarias, casas de show, clubes, parques, cinemas etc. No entanto, não vou falar dela. Não falar de museus ou indicar passeios, mas sim de um problema. A cidade te animaliza! E se tornou um problema depois que comecei a sentir os primeiros sintomas de esclerose múltipla.

Minha relação com São Paulo mudou ao longo do tempo e com as mudanças que sentia no meu corpo. Costumo dizer que tenho três percepções sobre a cidade e se precisasse apresentá-la a alguém faria sobre três perspectivas diferentes. Diferentes, mas que não estão de forma alguma separadas. Afinal, às vezes, você é um visitante, que não entende e tem de lidar com a rotina da cidade e, além disso, é um viajante com Esclerose Múltipla e que, mesmo que quisesse, não conseguiria seguir o mesmo ritmo.

1 – COMO VISITANTE

Antes a cidade era só um lugar de passagem. Um lugar a que ia devido a um interesse indireto: um show, uma atividade cultural, uma loja, uma escola etc.; mas não passava mais que um dia. Por mais tempo que gastasse em um evento, ia de manhã e voltava à noite. Em 2005 e 2006 passei a viajar diariamente para São Paulo. Por conta da faculdade, ia de trem de Suzano até São Paulo (para quem não conhece as distâncias; dá aproximadamente 1h30 de trajeto, mas de carro não chega a uma hora de viagem). Pra mim, São Paulo era um ideal. Apesar de apreciar a vida tranquila da cidade da Grande São Paulo, me encantava a possibilidade de um dia ir morar na capital. Além do mais, trabalhando como músico, sabia que as melhores oportunidades estavam em São Paulo, seja como professor de guitarra, seja como músico de banda.

2 – COMO MORADOR

A partir de 2007, passei a morar em São Paulo por conta das faculdades (sim, no plural). Além do bacharelado em música que cursava de manhã, ingressei no curso noturno de História em uma universidade pública, cujo campus ficava em Guarulhos. O prédio em que morava ficava a uns 15 minutos a pé da faculdade de música e em frente ao terminal de ônibus para Guarulhos. Era um ponto estratégico.

Morando em São Paulo pude vivenciar a cidade mais intensamente. Morava em frente ao metrô Armênia. Estava próximo a eventos acadêmicos, bares, shows, centro culturais, cinemas (sim pude assistir a filmes menos conhecidos e mais artístico, em Suzano só passavam aqueles filmes Blockbuster) etc. Mas também fui domesticado ao ritmo próprio da cidade.

Estava sempre correndo. Sabia as portas dos vagões de metrô que deixavam mais próximo a escadas e saídas encurtando distâncias e economizando tempo; sabia os ônibus pelos códigos e não só pelos itinerários (exemplo, se alguém me perguntasse que ônibus pegar para tal destino, respondia pega o 175T, o 106A, o 178A etc.). Fui condicionado às posturas e comportamentos a se tomar em determinadas ocasiões, como deixar a esquerda livre nas escadas para quem estava com pressa, a lutar por um lugar para sentar no trem quando a porta abria (como o Rei Leônidas, ao sinal de abertura das portas, quase era possível ouvir This is Sparta!), a saber que dependendo do transporte e do horário, dois corpos ocupam sim o mesmo lugar no espaço. Ou seja, aprendi e seguia o ritmo que a cidade me impunha.

3 – COMO ESCLEROSADO

No entanto, esse ritmo se tornou um problema aos primeiros sinais de EM. Brinco que eu gosto muito de São Paulo, mas São Paulo passou a não gostar mais de mim. Ficou impossível seguir seu ritmo. Fugia dos horários de pico. Passei a usar mais a bengala para conseguir sentar nos transportes (a visualidade é realmente importante). Por conta disso, passei a usar mais os vagões preferenciais nos horários de mais movimento. Distâncias que fazia a pé, passei a sofrer para caminhar ou fazer de carro. Por conta das paradas necessárias para descanso, passei a estar sempre adiantado. Eu que estava acostumado a sair no último momento, comecei a preferir chegar antes no local e esperar do que fazer algo correndo. Comecei a recusar convites para lugares longes, sem acessibilidade e sem lugares para se sentar.

Mas, apesar disso, já estava viciado no ritmo da cidade. Quando comecei a namorar a Bruna precisei me desintoxicar aos poucos. Lembro-me do dia em que consultei a primeira vez com a nossa neuro aqui em Porto Alegre, falei para a Bruna: Amor, falta uma hora pra consulta. Não precisamos sair? No que ela me respondeu: Calma! Em 15 minutos estamos lá. Isso virou motivo de risada entre a gente. Uma vez, em São Paulo, ao ouvir o sinal da porta do metrô fui “correndo”, com a bengala, para entrar no vagão. Só que a Bruna, em outro ritmo, não me seguiu e ficou do lado de fora. Se não fosse a disponibilidade de alguns passageiros em abrir a porta, só nos encontraríamos na próxima estação e ficaria me sentindo culpado pro resto da vida. (Segundo ela, mesmo assim, eu ainda posso, e devo, me sentir culpado pelo resto da vida. Mas também há pessoas gentis, como ela descreveu nesse post)

Falo que a EM me deixou mais egoísta. Agora faço as coisas do meu ritmo e não na dinâmica exigida por uma cidade ou amigos. Essa é uma regra de ouro que vale para qualquer viagem e local que visite. Às vezes, nos permitimos se adaptar à cidade que visitamos, mas nem sempre é possível. Com EM, às vezes somos obrigados a seguir os dizeres: meu corpo, minhas regras!

Fonte: Guia do Viajante Esclerosado – Jota

Explore mais