EM e Paternidade (Parte VIII) – Sobre derrotas e trincheiras I

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2016 e 2017 foram anos bem difíceis, mas igualmente muito pedagógicos. Aprendi uma das maiores lições da minha vida e espero poder te ensinar algo, Francisco. Acima de tudo, eu aprendi a perder e a conviver com a derrota. Há um ano faleceu um tio meu. Essa situação, para além da perda, chacoalhou minha própria relação com a EM. Afinal, se a Esclerose não é uma doença letal, indiretamente pode nos trazer uma série de complicações, que causam danos sérios ou até o óbito.

Durante a gravidez da Bruna, tive que lidar com a recorrente piora da minha condição física, ficando cada vez mais dependente e deixando de fazer coisas cotidianas. Novas limitações me aguardavam em uma linha que parecia continuamente decrescente. Assim, quando comecei a escrever essa série sobre paternidade ela tinha como objetivo ser uma espécie de testamento.

Ninguém sabe quanto tempo ainda lhe resta, mas, sentindo no corpo uma constante degeneração, queria contribuir de alguma forma para a formação do Francisco, mesmo que não estivesse mais aqui. Pode parecer meio mórbido, mas cheguei a um ponto em que pensava “tudo bem. Se for pra ser assim, que seja”. No entanto, essa desimportância da vida e das promessas de um futuro melhor, me trouxeram benefícios incontáveis: uma vivência mais ligada ao presente, ao meu corpo e as pessoas que eram realmente relevantes na vida. Aquilo que começou como testamento tornou-se um guia para pensar minhas próprias atitudes frente à paternidade e ao mundo. A sensação de proximidade da morte fez com que esse intervalo, entre o nascimento e a morte, que chamamos de “vida”, fosse exaltado e vivido com intensidade.

O foco deixou de ser aquilo que gostaria de ser, para aquilo que eu era no presente. Coloquei-me no centro das intenções de qualquer experiência; desejava ganhar não por receio de fracassar, mas por vontade própria mesmo. Na vida há uma verdadeira obsessão com a vitória e transformam nossa passagem por aqui em uma eterna competição, o que nos leva necessariamente ao individualismo e ao egoísmo, enfraquecendo a fraternidade e os laços sociais.

Observando minha existência até aqui, foi isso. Achava que devia me preparar para as situações que pudesse vir a enfrentar, como se a vida fosse um grande ensaio antes da grande e confiante estreia. Tentava evitar a derrota a todo custo. Não me arriscava naquelas coisas as quais sabia não ser bom. Ao contrário, naquilo em que acreditava ser bom, seguia direitinho todas as normas e princípios para obter sucesso. Assim, me tornava escravo delas, em nome de coisas e regras que, teoricamente, me permitiriam continuar a vencer.

Mas isso não é um problema unicamente individual. Vivemos em uma estrutura que nos ensina e exalta, o tempo todo, os meios para vencer e ser um vitorioso. Parece que quanto maior for o rastro de perdedores que deixamos no caminho, maior será o índice do nosso sucesso. Preocupados em não perder, seguimos um ritmo imposto, sem questionar se aquela velocidade exigida, encarada com normalidade, é realmente natural e dialoga com nossos objetivos e experiências.

Em uma falsa ideia de liberdade, nos deixam escolher entre as opções disponíveis, desde que escolhemos uma dentro das opções que nos dão. No entanto, escolher para além das alternativas é rebelar-se contra as regras que te garantiriam a vitória. É estar disposto a perder, para continuar sendo e fazendo o que se acredita. Um mundo obsecado com a vitória grita: acomode-se.  Por isso nos impõe uma estrutura que nos condiciona e que nos impulsiona a correr para não perder. Como disse a rainha vermelha a Alice:

Agora, aqui, sabe, é necessário toda a corrida que você tem para se manter no mesmo lugar. Se você quer ir a um lugar diferente, você deve correr pelo menos duas vezes mais rápido que aquilo! Rainha Vermelha. Alice através do espelho

E aqueles que fazem essa estrutura querem nos fazer acreditar, o tempo todo, que não podemos perder. E, enquanto nos preocupamos a não perder o pouco que temos, “eles” querem continuar ganhando ainda mais e se apegam a uma estrutura que não permita a autonomia e reforce a dependência. No fundo, o golpe foi isso.

Para quem está acostumado a vencer, a igualdade deve ser realmente uma ameaça. Só aprenderam a vencer e a viver em uma estrutura que lhes garantiriam a vitória; disfarçando privilégios, sob o discurso do mérito. Criados nessa estrutura, mais a “sins” do que “nãos”, aqueles que são pais hoje têm uma grande missão pela frente: ensinar seus filhos a perder. Só assim a vitória não será uma prisão.

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Decidi dividir esse texto em dois porque já estava ficando muito grande. No próximo post quero falar mais especificamente sobre a derrota e como ela pode ser agressiva.

 

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