EM e Paternidade (Parte III) – Seja água

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Meses atrás, vi um pedaço de uma entrevista que Bruce Lee deu no começo da década de 1970. No vídeo, ele sugere que sejamos como a água, sem forma definida, ocupando o formato do recipiente em que se é colocado. O trecho é bem conhecido, mas certamente, Francisco, essa propriedade dos líquidos pode ser um ótimo ensinamento e modo de enfrentamento das situações da vida.

Às vezes, precisamos ser sólidos como gelo. A fluidez pode causar insegurança ao outro. Precisamos proporcionar estabilidade, como um rio congelado que se oferece à patinação. Em outras, é necessário repensar nossa própria solidez e aqueles valores congelados, que magoam aqueles próximos a nós; se abrindo a novos mundos e novas formas, para despencar, como um bloco de gelo derretido, em um mar de possibilidades. Às vezes, precisamos construir algo duradouro e estável com outros sólidos, como uma geleira, desejosos da mesma união.

Em outros momentos, ao contrário, necessitamos que a estabilidade alheia nos conduza, como as margens de um rio e nos coloque limites como as pedras ou troncos de árvores encontrados no caminho. Devemos ter a sabedoria de reconhecer a solidez de certas estruturas frente a nossas possibilidades individuais, sendo necessário desviar para continuar seguindo. Em outras ocasiões, é preciso perceber a fragilidade daqueles limites que nos são impostos e que pareciam tão sólidos e estáveis anteriormente. Como diz o ditado, “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Às vezes, estamos no momento exato do furo. Algo que parecia improvável emerge e é preciso romper as pedras, com a coragem de aprender novos caminhos e questionar certezas anteriores. Como diz Lee, a água pode fluir ou destruir. Há uma hora certa e ocasião pra tudo de acordo com nossos objetivos. Talvez esse novo momento exja mesmo outros comportamentos, não sendo mais possível desviar como fizemos repetidamente por toda uma vida.

Igualmente, é necessário tomar cuidado com as características do recipiente. Caso tentemos colocar um conteúdo em um copo muito frágil sem pensarmos na pressão, ele quebrará. O mesmo pode ser dito a respeito da capacidade do copo. A mesma quantidade de líquido pode transbordar ou faltar, dependendo do volume do vasilhame. Às vezes, é necessário doses menores e mais lentas. Também, devemos estar atentos à relação “forma e conteúdo”. Um conteúdo apropriado, mas em uma forma muito sólida talvez não se encaixe, como um bloco de gelo em um copo muito estreito.

Em suma, o grande convite do vídeo é que sejamos os meios de nossas próprias transformações. Há horas de destruir, há horas de fluir, há horas de se adaptar aos mais diferentes formatos. No entanto, o elemento causador de tudo isso é sempre o mesmo. Costumo dizer que não temos controle sobre as ações dos outros – que podem nos parecer exageradas ou desmedidas e que podem gerar em nós reações impensadas e que causem arrependimentos posteriores –, podemos ter apenas responsabilidade sobre nossas atitudes. O que você faz das situações em que se encontra é o que realmente interessa e está ao nosso alcance.

Assim como cada dia em nossas vidas é diferente, nesse fluxo contínuo chamado tempo, um rio corre da nascente à foz, nunca sendo o mesmo. A água é uma metáfora para a identidade. Enquanto totalidade, um rio é o mesmo, podendo ser descrito pelo mesmo nome, mas cada porção d’água enfrenta desafios diferentes em sua jornada, sempre novos e nunca repetíveis. O mesmo acontece conosco ao longo da vida.  E quanto mais sólidos e apegados estivermos às coisas (sejam elas funções, bens, pessoas), mais sofreremos e mais difícil será a mudança.

O mesmo se dá em relação a nossa identidade com Esclerose Múltipla; um dia acordamos sem mexer um braço, outro precisamos ser empurrados em uma cadeira de rodas, e em outros só temos sintomas invisíveis e as pessoas juram que não temos EM. Não temos controle das novidades que a EM nos trará, mas somos responsáveis pela forma com que lidamos com essas novas dificuldades. E, nesse sentido, quanto mais sólido for nossa identidade, mais difícil será representar outros papéis. Como diz o escritor uruguaio Eduardo Galeano,”somos o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio.”. A vida é um fluxo cheio de obstáculos a contornar ou resistir; e nesse fluxo compartilhamos nossa existência com diferentes tipos de recipientes: uns menores, outros maiores, uns mais estreitos, outros mais largos. O importante é saber qual é de fato o objetivo de uma ação? Palavras ou atos, como um rio, não correm em sentido oposto.  Cabe a nós sermos o meio dessas mudanças e se adaptar à toda essa diversidade.  Então, Francisco, “seja água, meu amigo”.

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Os dois primeiros textos sobre esse tema foram mais focados na minha experiência e aprendizado enquanto pai. A partir desse post pretendo abordar assuntos que gostaria de ensinar ao Francisco (talvez ele não entenda tão cedo, talvez esses sejam mais guias para me conduzir nessa misão. De qualquer forma…). No entanto, apesar do tom pessoal, como uma carta em que ele é o principal destinatário, acho que as questões trazidas aqui são bem mais amplas e dialogam com a relação que precisei aprender (e continuo, ainda estou no caminho) nesses anos de EM. Então talvez sirva para outros esclerosados também…

 

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=ioHsOja-u9U]

 

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