EM e Educação (Parte III) – Dicionário de Experiências

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Olá queridos e queridas, tudo bem?

Então, quando eu e o Jota pensamos em escrever sobre EM e Educação, pensamos não só na educação formal, aquela da escola, da faculdade, com seus currículos. Mas nessa educação diária, que a vida nos dá e que, quando estamos atentos e sensíveis à, aprendemos.

Eu fui muito educada pelos movimentos sociais dos quais participo, pela minha doença, pela experiência do corpo, pela troca com outras pessoas que vivem experiências semelhantes e também totalmente diversas da minha. Acho que a experiência é um “lugar” de aprendizado preciosíssimo.

Nos educamos também na leitura. E não só na leitura de livros, mas nos sites e blogs que visitamos. Na minha tese de doutorado defendo isso falando dos blogs e do quanto as experiências que lemos nos blogs nos ajudam a nos constituir com uma doença. Mas, enfim, hoje não vim falar da tese, mas de coisas que aprendi com essa experiência e que nós dois, eu e o Jota, julgamos necessário passar adiante. Por isso criamos uma espécie de Glossário da Inclusão. Não é bem um glossário porque eu acabo citando exemplos e dando minha opinião. Mas são palavras e/ou expressões que achamos importante de dizer o que significam pra gente e pro movimento das pessoas com deficiência. Você vai encontrar aí palavras que precisam ser aprendidas e palavras que, na nossa experiência, precisam ser abolidas:

1. Pessoa com deficiência: O primeiro termo que a gente gostaria que as pessoas aprendessem a usar é esse, PESSOA COM DEFICIÊNCIA. Não portador, nem especial, nem excepcional e muito menos portadora de necessidade especiais. Mas Bruna, porquê? Bem, primeiro vamos lembrar que existe um movimento político das pessoas com deficiência por respeito e dignidade. Esse movimento não é nada novo, mas anda a passos lentos. Antigamente as pessoas com deficiência não saíam nas ruas, não eram reconhecidas como cidadãs, não tinham direitos… enfim, não eram reconhecidas como pessoas, mas como estorvos mesmo, quando não, uma representação do mal. Uma das decisões do movimento das pessoas com deficiência foi pedir que as chamem primeiramente de pessoas, depois coloquem a deficiência como algo que se tem. Portador não é uma palavra boa porque quem porta algo pode deixar de portar. A gente porta uma bolsa, um óculos, uma arma… mas não uma deficiência ou uma doença. Não somos portadores de EM, afinal, não podemos deixar ela em casa né? Logo, o correto é chamar Pessoa com… pessoa com deficiência, com EM, com síndrome de Down, com olhos azuis… ou vocês dizem pessoas portadoras de olhos azuis? Viu como faz sentido?

2. Portador: bom, então já resolvemos essa coisa do portador né? A gente não porta uma deficiência. A gente a tem. Ela faz parte do nosso corpo, do nosso ser, mas não é o que somos. Antes de tudo, somos pessoas que podemos portar algumas coisas e ter outras. Quando falamos de doenças ou deficiências, nós temos.

3. Deficiente, esclerosado: mas Bruna, vocês dizem esclerosado e eu conheço muitas pessoas com deficiência que se dizem deficientes, cadeirantes sem problemas, e agora? Bem, aí entram duas questões: uma semântica e outra de autodeclaração. A questão semântica, da palavra em si, diz que, por exemplo, o sufixo ADO refere-se àquele que tem. Logo, EsclerosADO, é aquele que tem esclerose. ENTE é o sufixo utilizado para exprimir um estado, daquele que usa, faz ou é. No caso deficiENTE é aquele que se encontra em estado de deficiência e o cadeirANTE é aquele que usa uma cadeira de rodas. O ideal é falarmos Pessoas com deficiência e perguntar para essa pessoa como ela se autodeclara. Eu, por exemplo, me autodeclaro esclerosada. Mas sei de pessoas que não gostam, que veem na palavra algo pejorativo. Eu a uso justamente porque sei que as palavras têm força. E o sentido que elas tem é o que a gente dá para elas. Se hoje o termo esclerose e/ou esclerosado se remete a algo ruim, depreciativo e pejorativo, eu o uso justamente para o contrário, para mostrar que é apenas algo que se tem. Sei que uma mudança cultural exige tempo. Mas eu não tenho pressa.

4. Deficiência: muitas pessoas tem medo de usar a palavra deficiência, porque a veem como o contrário de eficiência. Não tem nada a ver gente! O contrário de Eficiência é Ineficiência. Deficiência é a palavra utilizada para designar perda de função. A perda de função pode ser permanente ou temporária. E perder uma função do corpo ou da mente não te faz ineficiente pra tudo na vida. Então, vamos perder o medo da palavra que não tem nada de pejorativo nela.

5. Especial: isso me leva a pensar na palavra especial. Muita gente diz que fulano é especial quando quer dizer que o fulano tem uma deficiência. Gente, especial todos nós somos para alguém. Aposto que eu sou super especial para a minha mãe. E aposto que vocês também são para as suas. E isso não quer dizer ter uma deficiência. Especial é um adjetivo para o que é particular, individual, peculiar. Não para deficiência. Muitas pessoas usam a palavra especial pelo medo que tem da palavra deficiência ou para mascarar uma “aceitação”. Parem com isso! (Aliás, mais um texto bom sobre esse termo AQUI)

6. Portadores de necessidade especiais: mas Bruna, se a palavra portador não é adequada, porque existe então a área PNE (portadores de necessidades especiais)? Ah, porque isso existe mesmo gente. Vejam bem, uma mulher grávida, pode ter uma necessidade particular de estar sentada no ônibus em movimento, assim como uma pessoa idosa. Isso não faz da grávida ou da pessoa idosa uma pessoa com deficiência, mas sim pessoas que carregam consigo uma dificuldade particular, ou, uma necessidade especial. Pessoas com deficiência podem ter necessidades especiais, ou não. Viram a diferença?

7. Acessibilidade: Bem, esse é um termo que parece mais complexo mas na verdade não é. A acessibilidade pode existir em diversas instâncias: arquitetônica, atitudinal, metodológica, tecnológica, entre outras. Não se preocupem, não vou explicar uma a uma. O importante é sabermos que o conceito de acessibilidade está ligado a tornar o mundo acessível a todos. Ou seja, acessibilidade não é só pra quem tem uma deficiência. Muito menos acessibilidade é colocar uma rampa. É isso também, mas é muito mais. É tornar acessível os meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, possibilitando TODAS as pessoas exercerem todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. Isso quer dizer colocar rampas onde há escadas, elevadores e banheiro adequados para pessoas com deficiência motora, mas é também fazer vídeos e publicar fotos com descrição das imagens para permitir o acesso de pessoas cegas e com baixa visão à totalidade do conteúdo dessa comunicação; é colocar legendas em vídeos e janela de libras, para que surdos que usam Libras e os que não usam também possam entender o que está sendo dito; é preparar aulas permitindo o uso de tecnologias assistivas para que pessoas com necessidades especiais (viu só como tem onde usar direito o termo?) possam ter acesso ao conteúdo, mas é também ter atitudes que tornem a convivência social acessível. A isso chamamos de acessibilidade atitudinal. E como ela se traduz no dia a dia? Bem, são aquelas pequenas ações que mudam a vida de todos nós, como, por exemplo, ao falar com uma pessoa com deficiência, perguntar as coisas pra ela e não pro seu acompanhante. Vocês acreditam que, quando eu e o Jota estamos juntos, algumas pessoas perguntam pra mim se ele quer água? Eu sempre respondo: pergunta pra ele, ele tá na tua frente. Ou quando perguntam pra minha mãe o nome da minha irmã. A Renata já se mete e diz, quase que dizendo: “ei, eu tô aqui viu?”. Falar pra reconhecer a pessoa parece bobagem, mas a gente não vê por aqui…

Outro exemplo de acessibilidade atitudinal é sempre perguntar pra pessoa antes de prestar qualquer tipo de ajuda impensada. Às vezes, aos olhos de quem vê a pessoa andando de muletas, pode parecer que ela precisa ser carregada no colo. Mas ao se meter no movimento dela, você não ajuda, prejudica. Cansei de ouvir histórias de amigos cegos que foram “atravessados à rua” sem precisarem, porque as pessoas imaginaram que eles queriam atravessar a rua e nem perguntaram antes de sair carregando a pessoa rua afora. Ah, e quando um surdo vir falar com você em Libras, não saia correndo assustado. Tente, de alguma forma, dizer que você não entende Libras, peça desculpas e dê um sorriso. Imagina só você, em um outro país, tentando pedir uma informação e ao dizer “oi” a pessoa olhasse pra você com cara de pânico, virasse as costas e saísse sem nem devolver um sorriso? Ser educado, sensível, humano não custa nada!

E agora, mais um exemplo que, na minha opinião, é primordial enquanto acessibilidade atitudinal: nunca, jamais, em hipótese alguma, nem por um minuto, ocupe vagas, bancos ou banheiros destinados para pessoas com deficiência. Lembre-se sempre que você consegue usar o outro banheiro, descer em outra vaga, andar de pé no busão, a pessoa com deficiência não. Para a pessoa com deficiência a vaga exclusiva não é privilégio nem benefício, mas condição para a participação na vida social. Então, lembre-se: NUNCA!

8. Inclusão:  assim como a acessibilidade é para todos, a inclusão também. Sempre pergunto, quando alguém fala “meus alunos de inclusão”, referindo-se aos alunos com deficiência nas escolas, se os outros alunos são de exclusão. Afinal, o processo de inclusão integra a todos e é para todos. Ele permite que pessoas com deficiência participem de atividades que antes lhes eram negadas (como a escola) e dá a oportunidade de pessoas sem deficiência conviverem com a deficiência. E a diversidade trazida por essa convivência enriquece e fortalece a todos nós (vide os depoimentos meu e do Jota no primeiro post dessa série). As pessoas continuam achando que inclusão (tanto nas escolas quanto no mercado de trabalho) é difícil porque vivem numa lógica de produtividade em que qualquer necessidade de mudança, adaptação e alteração de ritmo é visto com maus olhos. Uma pena. Uma sociedade sem inclusão é uma sociedade em que todos perdem.

9. Capacitismo: Sobre esse tema eu escrevi há alguns dias no meu blog pessoal, porque num guento esse povo todo maquiando seus preconceitos achando que estão “incluindo”. Capacitismo é o nome dado à discriminação direcionada às pessoas com algum tipo de deficiência em virtude de sua condição. Chamar de coitadinho, achar que ali não é seu lugar, achar que toda pessoa com deficiência tem que ter um “responsável” por ela, achar que toda pessoa com deficiência sofre, que a falta de uma função é imperfeição, tudo isso é  discriminar.  E ficar chamando qualquer pessoa com deficiência, só pelo fato dela viver, de exemplo de superação, é sim discriminar também.

10. Superação: Vamos ao capacitismo disfarçado de superação então. Superação não existe? Existe sim. Mas não é algo inerente à pessoa com deficiência. No momento que as pessoas começam com frases como “apesar da deficiência fez tal coisa”, pronto, você já está vendo a pessoa a partir da sua deficiência e não das suas capacidades. E dá-lhe capacitismo! Além disso, essa coisa de superação, de contar “sagas de vida” do tipo “apesar de… foi lá e venceu”, só serve para quem não tem nenhuma deficiência se sentir melhor (ou pior) com a vida que tem. Há alguns dias chegou às minhas mãos um texto muito bom em que uma moça explica bem essa questão, a partir de sua vivência pessoal (leia aqui) e sentencia: “O cara não tem uma perna, não tem um braço, não anda, não enxerga e a gente deduz que a vida dele é foda. E presta atenção como automaticamente nos sentimos melhor por sermos “perfeitos” e termos a vida “mais fácil”.
Traz um conforto né? “Se eu fosse você eu não conseguiria” “Como você consegue?” “Nossa você é uma guerreira” 
Todos deduzem que nós temos mais dificuldades do que uma pessoa sem deficiência, todos assumem que a nossa vida é pior. Pois eu tenho uma novidade pra você: Não é. Anota: O que torna nossa vida pior é o capacitismo, e não nossa condição física. Digam pra mim: um vídeo onde a pessoa com deficiência é retratado como uma grande inspiração ou superação… ajuda mais a pessoa com deficiência ou o não deficiente? No fim do vídeo QUEM acaba pensando “Eu tô reclamando do que”? A verdade é que quando você diz que somos inspiradores e exemplo de superação é porque você tem uma baixa expectativa sobre nós, você realmente acredita que por ser deficiente é um grande sacrifício viver e qualquer coisa que a gente faça supera suas expectativas.E todos estamos aqui, com deficiência ou não, fazendo o melhor que a gente pode com as nossas capacidades. Só isso.”

Genial! Obrigada Camila!

11. Normal – Se tem um negócio que incomoda também é essa mania das pessoas quererem ser normais, ter uma vida normal, e usar a palavra normal para designar o contrário da pessoa com deficiência. Não vou adentrar aqui nas teorias da normalidade, mas gente, o normal é relacional. Algo vai ser normal ou anormal dependendo de com que se compara e qual padrão se usa. Eu acho que tenho uma vida normal. Meu dia a dia inclui remédios, tratamentos, idas a vários médicos, exames etc. A do Jota inclui tudo isso, mais terapias complementares, mais pedir ajuda pra sentar, levantar, comer, tomar banho etc. E isso pra gente é normal. A norma tem a ver com um padrão que se tem como o “correto”. E aí eu te pergunto: que padrão de ser humano é o certo hein? Quem atinge a todos os padrões de normalidade impostos pela ciência ou pela sociedade? Então, parem com isso de gente normal. Se quiser usar um termo para a pessoa que não tem deficiência é pessoa sem deficiência oras.

E aqui vai uma listinha de palavras que devem parar de ser usadas JÁ!: preso a; sofre de; coitadinho; portador; aleijado; surdo-mudo. Sério gente. Para que tá feio! Na dúvida, pergunta pra pessoa como ela prefere ser chamada… quando me perguntam como a pessoa xis ou ipsilon, que tem uma deficiência prefere ser chamada, eu costumo responder que pelo nome é bom.

Sabemos que muitas coisas são difíceis de mudar. Muitas pessoas nos dizem: ah, mas foi assim que eu aprendi, mas “no meu tempo” era diferente, mas eu falo porque todo mundo fala. E eu não canso de responder: o que a gente aprende, pode perfeitamente desaprender; sempre podemos aprender coisas novas enquanto estivermos vivos, portanto, tempo/idade não é desculpa para não aprender algo novo e a maioria das coisas que todo mundo fala, o tal do “senso comum”, costuma não ser algo pensado, portanto, precisamos parar e refletir um pouco antes de falar/fazer qualquer coisa, principalmente quando isso diz respeito a outras pessoas, outras vidas. A gente tem que parar de querer contar a história da vida dos outros. Cada um pode, perfeitamente, contar a sua. Não cabe a mim Bruna blogueira, ou pesquisadora, ou professora contar a história de vida de outras pessoas. Não cabe às pessoas sem deficiência querer falar pelas pessoas com deficiência. Um dos nossos lemas, no movimento diz: Nada sobre nós sem nós. Não custa tentar, não é mesmo?

Deixamos como sugestão essa leitura para quem tem interesse em continuar aprendendo. E, claro, nos colocamos à disposição para responder dúvidas, dar aulas, conversar no bar sobre isso etc

 

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