Alice e a suspensão do tempo

Compartilhe este post

Compartilhar no facebook
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no twitter

por José Isaías Venera

Em A lentidão, Milan Kundera exalta a vida na sua potência máxima, deixando o tempo suspenso para reinar o instante. Um livro, até certa medida, epicurista, cujo sentido de prazer é o de não sofrer. Sentido bem diferente do valor que costuma-se dar ao hedonismo. A literatura começa com uma viagem de carro do narrador com sua parceira em que ele percebe uma pequena luz à esquerda piscando. O que vem atrás emite sinais de impaciência: “O motorista espera a oportunidade de me ultrapassar; espera esse momento como uma ave de rapina espreita um passado”. A narrativa pode ser entendida como uma crítica a vida apressada e, outras vezes, demasiadamente adaptada nos arranjos rotineiros. Mas o que Kundera persegue mesmo são os instantes que deslocam seus personagens da servidão do dia a dia e dos compromissos que comprometem o futuro das pessoas.

Observemos como ele comenta o motorista-rapina: “o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu voo; é arrancado da continuidade do tempo; em outras palavras, está num estado de êxtase; nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro e quem se liberta do futuro nada tem a temer”.

Desafio impossível – se libertar do futuro, desta objetivação da subjetividade. Exemplo mais palpável é a agenda. Basta acordar cedo e abri-la para dar início a materialização do que nós mesmos havíamos anotado. É evidente que a vida precisa funcionar. Mas, se algo podemos tirar de proveito desta obra de Kundera, é de que a vida pode ser sentida com mais intensidade quando fazemos ranhuras no tempo, quando o instante não está mais subordinado aos compromissos diários, mesmo que se tenha que pagar, em alguns casos, um preço caro; quase sempre o de sentir “a insustentável leveza do ser” no momento seguinte à suspensão do tempo.

Mas não é a este tempo suspenso pelo êxtase provocado pela máquina que Kundera nos faz ver. É evidente que o motorista experimenta a velocidade “como êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem”. Essa aliança entre técnica (motocicleta) e o êxtase anestesia parte de nossos sentidos. Como Kundera nos faz ver, ao contrário do motociclista, “quem corre a pé está presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida”. A lentidão é sentida como o tempo necessário para o sujeito se colocar inteiro no movimento. Por isso, Kundera deixa uma questão: “Por que o prazer da lentidão desapareceu?”

Acho que Alice personagem se identifica muito com o instante liberto do tempo. A princípio, a relação é imediata: é o mesmo que entrar na toca do coelho, poder encolher ou se agigantar etc. Mas engana-se quem faz essa relação apressada. A ranhura no tempo pelo motociclista suspende o próprio sujeito imóvel numa máquina em alta velocidade. O desafio é suspender o tempo subordinado nos valores e na funcionalidade social, para que ele, o sujeito, possa advir em sua individualidade e nos arranjos afetivos (bem diferente da experiência com as máquinas). Não há cena melhor descrita por Kundera do que a viagem, há mais de 200 anos, de Madame de T. e do jovem cavalheiro que a acompanhava: “É a primeira vez que estão tão perto um do outro, e a indizível atmosfera de sensualidade que os cercam nasce justamente da lentidão da cadência – balançados pelo movimento da carruagem, os dois corpos se tocam, primeiro sem querer, depois querendo, e a história começa”. 

A lentidão talvez seja a melhor forma de sentir a vida. A lentidão como qualidade que se pode cultivar, permitindo transformar os sentidos que se dá a fadiga, esta sensação demasiada de cansaço que acomete os pacientes de Esclerose Múltipla. Para suspender o tempo subordinado a velocidade das máquinas e dos dispositivos que marcam nossa época, é preciso reencontrar o prazer na lentidão. Caminho para resinificar os sentidos que atravessam muitos pacientes de EM, quando reduzem a velocidade da vida. Deixar de fazer algo, ou fazê-lo em outro tempo, pode ser encarado com dureza levando muitos a se sentirem inúteis. Mas, estes são apensas sentidos que sugam a experiência do sujeito, assim como a máquina que deixa o motociclista em êxtase por viver a velocidade sem que seus pés deem um passo. Com a motocicleta, a tecnologia mobiliza o motociclista. Com as palavras que atribuem sentido depreciativo a experiência da lentidão, é a lógica do nosso tempo reduzida à produção e ao consumo que suga nossa energia. Façamos sempre como Alice, busquemos os sentidos inesperados às coisas, estes sentidos que estão suspensos dos valores que regulam a vida social.

 

 

 

Explore mais