A história de Alice nas histórias de outros

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Olá amigos múltiplos! Estou aqui novamente para contar um pouco das histórias de vida de pessoas com Esclerose Múltipla. Histórias que tenho ouvido nos últimos meses e como tenho sentido e refletido a minha própria experiência com Alice. Como já contei para vocês, estou montando um acervo de Histórias de Vida de pessoas com Esclerose Múltipla, já tenho cinco histórias completas gravadas em áudio e vídeo, com os áudios transcritos em forma de textos e os vídeos em processo de edição. São cerca de 1.500 minutos de gravação e isso significa muito, muito muito trabalho. Tudo isso é feito na Universidade da Região de Joinville, lugar em que trabalho, e sempre junto com estudantes, aprendizes na pesquisa. São histórias de vidas de pessoas entre 40 e 50 anos, que vivem há mais de 10 anos com EM. Estamos considerando um tempo que ainda não se sabia tanto sobre a doença e tínhamos poucas opções de medicamentos. Além dessas histórias, já tenho agenda com mais sete outras histórias, agora com jovens no início da carreira e da construção da vida adulta. A maioria desses jovens com diagnósticos mais recentes.  

Essa inserção na universidade me facilita uma série de condições para essa coleta, mas também implica em estres, exercícios de paciência, adaptações com meu ritmo, especialmente quando vivemos o contexto atual de cortes de verbas em pesquisas etc. Ainda assim, todas essas histórias que já tenho, e quando penso nas que ainda vou coletar, me fazem refletir muito sobre a vida com Esclerose Múltipla e assim vou me encontrando também. Hoje escolhi duas histórias que tenho muito apreço e que me fizeram ver as possibilidades da vida com EM por outro ângulo.

Esse texto estava agendado para ser postado há mais de um mês, mas ele foi escrito exatamente nesse contexto de adaptações com a minha EM. E vocês vão entender o que essas duas histórias têm a ver com esse atraso e com a minha EM hoje. Mas essas Histórias eu vou dividir em três partes. Na primeira parte vou te apresentar a Nilza Wegner. Conheci a Nilza depois do meu diagnóstico, ela foi a primeira pessoa diagnosticada com EM aqui em Joinville. Na segunda parte do texto você vai conhecer o Ademir Pedro de Souza, ele tem a minha idade e ficou procurando pelo diagnostico por 10 anos. E na terceira parte do texto… então eu vou te contar porque essas duas histórias mexem tanto comigo e porque atrasei a postagem desse texto. Então vamos lá…

 

 

A primeira história é a de Nilza. Ela nasceu em 15 de outubro de 1961 em um bairro de Joinville onde ainda era possível manter criações de animais, como vacas, porcos. Fez questão de contar sobre os cuidados que recebeu na infância, que a mãe ficou com ela durante os primeiros dois anos de vida, e depois, mesmo que precisasse voltar ao trabalho como doméstica, levava-a e estava sempre atenta. Sobre o pai, ela se lembra de um homem bonito, que trabalhava muito, era brincalhão e lhe trazia muitos presentes. Todos que ela desejava. Nilza cresceu visitando a casa dos avós, brincando e brigando com os primos e frequentando a igreja Luterana. Ao mesmo tempo, narrou também pequenos acidentes domésticos que lhe aconteceram, e sobre esses, marca uma narrativa da mãe responsabilizando o pai e vice versa.  Em sua narrativa existe ao mesmo tempo o destaque para um cuidado e a presença de uma rigidez muito grande na educação e na construção de disciplina.

Medidas disciplinares que ela tratou de transgredir, mais ou menos na mesma época em que fez a “confirmação” na igreja e quando começou com as paqueras com os meninos. Nilza se narra uma moça bonita, desejada pelos rapazes. Mesmo que os pais não tenham aprovado um namorado, porque ele era filho de pais separados e de descendência italiana, ela tratou de se firmar com outro de “origem alemã”, mesmo que ex-namorado de uma amiga. Sob o aceite dos pais, os passeios com os amigos de moto, as aventuras passaram a fazer parte da sua vida com esse namorado. Viver uma liberdade nunca antes experimentada. Os registros fotográficos dessa história de amor e liberdade foram socializados durante as seções de entrevistas como um trunfo de um passado feliz e desejado. Uma juventude adjetivada como “rebelde”, mas ao mesmo tempo, narrada com muito sentido de liberdade e força vital. 

Nilza não terminou os estudos na universidade, segundo ela por concentrar no namoro, e com o curso do antigo segundo grau técnico em contabilidade, trabalhava em escritórios. Casou-se e foi morar com os pais, mas a disciplina e as regras da casa nunca mudaram e assim que suas condições no trabalho melhoraram ela financiou uma casa. Foi mãe de dois filhos e contou com a ajuda da sogra para cuidar do primeiro bebe. Mas, depois da segunda gravidez deixou o trabalho remunerado e se dedicou aos afazeres domésticos e aos cuidados das crianças. Ela narra com arrependimento um afastamento dos seus pais e uma aproximação muito intensa com a família do marido. Ao lembrar-se da sua relação com seus filhos também se arrepende por ter sido tão rígida, tão exigente e enxerga no pai das crianças o papel maternal de afeto, de carinho e explicitação de amor.  Ela conta que os filhos na fase escolar, como muitas outras crianças, frequentavam além da escola, o movimento escoteiro e a igreja Luterana.

Logo que as crianças cresceram, a inquieta Nilza montou uma estamparia que funcionou inicialmente no mesmo endereço de sua casa. Esse empreendimento deu muito certo e se transformou em uma facção terceirizada da Benetton, que funcionava das 5h da manhã às 10h da noite, com costureiras trabalhando em turnos. Ela se transformou em uma pequena empresária e narra esse momento como um momento de ânsia pela riqueza, exercitando toda a sua destreza, agilidade, exigência de perfeição na produção e muito estres. Foi um momento também de crises no casamento, desconfianças de traições e o aparecimento dos primeiros sintomas da Esclerose Múltipla.  Nesse momento, ela diz ‘não tinha Nilza, eu não pensava em mim, era só trabalho, trabalho, trabalho’.

A busca pelo diagnóstico, as limitações físicas vieram ao mesmo tempo em que uma crises no trabalho do marido em uma fábrica têxtil da cidade e a volta para a dependência financeira dos pais. Desta vez, sem uma renda e com o marido desempregado, o pai de Nilza que nunca tinha se relacionado bem com o genro, exigiu que ele se retirasse da relação. Com um entendimento claro de que se o homem deveria ser o provedor da família, e ele não conseguindo garantir nem o plano de saúde para a filha, não deveria mais fazer parte da casa. O marido, dizendo não aguentar mais aquela situação imposta se retirou para sempre. Assim, diagnosticada com EM, em um tempo em que não haviam medicações disponíveis, limitada para desenvolver suas atividades de empresária, foi acolhida pelos pais, mas sofrendo também com a perda de um grande amor. Magoada com os pais ao mesmo tempo em que se tornou totalmente dependente deles. Hoje, seu pai já é falecido, e mesmo que tenha tentado se manter em sua casa com seus filhos, esses saíram para casar e restou a ela convidar a mãe para dividirem a mesma casa e a mesma cuidadora. O ex-marido já em outro relacionamento, nunca mais foi bem vindo a sua casa e paga uma pequena pensão depois de uma briga judicial. Uma das sobrinhas dele é a sua cuidadora há 11 anos e somente seu sobrenome já causa insatisfações da ‘Oma’. Eles são avós de três crianças, ela percebe o filho mais velho no seu antigo ritmo, com muito trabalho, muito estres e desejo de conquistar riquezas e com pouco tempo para atenções a família. O mais novo, a visita todos os dias, a coloca para dormir todas as noites e com um beijo se despede.

Nilza recebia a equipe para entrevista-la em sua casa com muito apreço, escolhia o quarto como o espaço onde se sentia mais segura para as entrevistas, perto do computador onde guardava alguns registros do passado. Nilza tem o hábito de registrar pequenas informações como datas de consultas que foram importantes para ela, primeira vez que fez uso de uma medicação, quando sofreu efeito colateral, quando fez troca de medicação, datas do casamento, confirmação das crianças, boletins escolares, entre outros documentos de família. Enfim, ela não quer perder as lembranças. 

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